Da Bastilha à Pepa
1 de agosto de 2010"Viva a França", ouvia-se nas ruas parisienses em 14 de julho de 1789, quando o povo, com bandeiras tricolores em mãos, tomou a Bastilha, símbolo do antigo regime. Menos de quatro anos depois, a cabeça de Luis 16 rolou na guilhotina. Não tardou muito para que as consequências da Revolução Francesa chegassem ao outro lado do Atlântico.
"Sem as ideias de liberdade, igualdade e fraternidade, os processos de independência latino-americanos não teriam sido o que foram", assegura o professor alemão Walther Bernecker, da Universidad de Erlangen. "As independências teriam acontecido de um jeito ou de outro, porque havia uma série de causas, mas elas teriam se desenvolvido de outra maneira, ou bem parecido mais tarde", complementa.
No século 18, a Europa viveu um período de conflitos que teve início com o Iluminismo e o Racionalismo inglês, que atraíam a atenção da sociedade para os assuntos terrenos, o ser humano, a razão, a ciência e o progresso. Os monarcas que, como Luis 16, ocupavam tranquilamente seus tronos em nome de Deus, notaram os primeiros tremores do terremoto que extinguiria, muitos anos mais tarde, a maioria das coroas. Os indícios deste sismo também foram sentidos no Continente Americano.
"Viva la Pepa", gritavam os deputados das Cortes de Cádiz em dezembro de 1813, comemorando a Constituição Espanhola de 1812. As tropas napoleônicas que ocupavam a Espanha haviam sido derrotadas; José Bonaparte, o rei estrangeiro, foi obrigado a renunciar o cargo que lhe havia sido concedido pelo irmão. Os representantes da Assembleia de Cádiz ainda não sabiam que sua Constituição, ratificada em 19 de março de 1812, seria abolida por Fernando 7º. Bourbon, restituído, contava com o apoio do Congresso de Viena e dos espanhóis, os quais o apelidaram de O Desejado.
"Sem a invasão da Espanha pelos franceses, as independências latino-americanas teriam se dado de forma diferente", afirma Stefan Rinke, da Universidade Livre de Berlim e autor do livro Revoluções na América Latina, caminhos para a independência (1760 - 1830).
Peru, Chile e México
A independência da América Latina não teve uma única causa. Ideias, circunstâncias e acontecimentos foram sendo somados ao longo de séculos. Com o passar do tempo, cada estudioso passou a dar mais ou menos importância a determinados assuntos ou acontecimentos.
"Há 50 ou 60 anos, a Revolução Francesa era considerada uma das razões das independências. Hoje, a importância daquele episódio continua sendo reconhecida, mas também se leva em conta que o terror desencadeado na França criou 'anticorpos' contra esse tipo de fenômeno na América Latina", explica o historiador peruano José Agustín de la Puente.
Ele reconhece a influência do que ficou conhecido como o "espírito crítico do século 18" nos processos de independência latino-americanos, mas explica por que esse não foi o fator essencial: "A parte central do mosaico que conduz a esse movimento são as ideias do Peru, do Chile e do México, ou seja, a certeza de que pertenciam a sociedades próprias. Inclusive os homens que permaneceram fieis à Coroa se sentiam, antes de espanhóis, nativos das terras em que haviam nascido".
Segundo o historiador, no início do século 19, a América Latina já estava bem diferente de como os primeiros colonizadores espanhóis a haviam encontrado, mas ao mesmo tempo havia tomado rumos diferentes dos da Espanha. Entretanto, Bernecker acredita que o sentimento nacional da região também tenha sido influenciado pelas missões científicas europeias: "Os estudiosos alemães, por exemplo – e Alexander von Humboldt não foi o único –, ajudaram os crioulos a perceber a enorme riqueza do seu continente, fortalecendo, assim, o orgulho latino-americano".
Stefan Rinke reconhece a relevância dessa mudança de consciência dos povos latino-americanos, mas defende que as independências devem ser entendidas segundo seu contexto. "E o contexto não é local, mas transatlântico", especifica. Para o professor da Universidade de Berlim, a desintegração da monarquia espanhola é outro fator que deve ser considerado.
O terreno na América Latina já estava fértil para os processos de independência há muito tempo. Com as revoluções estadunidense e francesa, o momento era propício para que as colônias espanholas também se rebelassem. Vale questionar, portanto, por que isso aconteceu apenas décadas mais tarde, reflete Rinke.
Sem o rei, o poder retorna ao povo
Em 1808, Napoleão assumiu o trono espanhol e o passou ao irmão José Bonaparte. Rinke resume: "Até aquele momento, a monarquia havia sido um elemento aglutinador. Mesmo quando os crioulos criticavam a Coroa, não atacavam o rei, mas seus assessores. A partir do momento em que o monarca desapareceu, a possibilidade de desligar-se completamente da Espanha ganhou cada vez mais terreno".
José Bonaparte, também chamado de "Pepe Botella" ("Zé Garrafa"), nunca foi reconhecido como rei pelo povo espanhol, o qual resistiu ao "intruso francês" com armas em uma guerra na qual teve apoio do outro lado do oceano.
"Isso ilustra como a América Latina cultivou o que chamamos de 'fidelismo', ou seja, a fidelidade à Coroa", explica o historiador José Agustín de la Puente. "Contudo, sem a figura do monarca como dono do poder, este voltou ao povo. E as juntas populares que surgiram para organizar a administração enquanto o rei [supostamente sequestrado pelos franceses] estivesse ausente, acabaram se convertendo em independentistas."
Ana Carolina Ibarra, do Instituto de Pesquisas Históricas do México, acredita que o vácuo na monarquia deu lugar ao secessionismo e aos ideais iluministas, republicanos, liberais, racionalistas e nacionalistas acumulados durante anos de contato com o Velho Continente. Essas ideias propagavam "que a revolução era legítima e que era justo rebelar-se contra um governo mau, tirano ou déspota".
Confiança ameaçada para sempre
Enquanto Fernando 7º se encontrava "exilado" em um castelo gaulês que Napoleão lhe havia presenteado em troca do trono espanhol, a "pátria mãe" travava uma batalha militar e outra política. Em Cádiz, prontos para fugir em caso de guerra, membros da corte se reuniam para formar uma monarquia constitucional que pudesse entrar em vigor com a volta do rei. Em 1812, eles sancionaram a Constituição de Cádiz, que ficou conhecida como "La Pepa", por ter sido assinada no dia de São José.
"A Constituição de Cádiz era excepcional para a época, não apenas pelo seu caráter liberal, mas também por ser a primeira a equiparar, seja política como socialmente, o país colonizador e suas colônias", comenta Manuel Chust Calero, professor de História da Universidade Jaime de Castellón, na cidade de Valência. Em seu primeiro artigo, o documento estabelecia que "a nação espanhola é a união de todos os espanhóis de ambos os hemisférios". O segundo artigo complementava: "A nação espanhola é livre e independente e não é nem pode vir a ser patrimônio de nenhuma família ou pessoa".
Contudo, esse princípio de igualdade não foi seguido na prática. Segundo Bernecker, "considerando a densidade da população, os latino-americanos teriam direito à maioria dos deputados na Corte". Puente explica: "O que as elites espanholas praticaram em Cádiz era uma contradição. Ao mesmo tempo em que pretendiam romper com o antigo regime, queriam conservar a obediência ao Império. Mas este era fruto do antigo regime".
Por um lado, os movimentos de independência e a estruturação dos Estados que surgiram a partir deles foram bastante influenciados pelo que aconteceu em Cádiz. Por outro, a revolução liberal também contribuiu para o crescente descontentamento nas colônias, sobretudo porque a decepção foi enorme, como explica Rinke: "Os espanhóis não só puseram em marcha esse processo constitucional, como também fizeram muita propaganda dele. Quando as expectativas foram frustradas, a confiança foi minada de tal forma que não pôde ser restabelecida".
A Constituição de Cádiz teve vida curta: acabou em 1814, quando Fernando 7º voltou da França. Assim que o antigo regime tentou recuperar posições na América Latina, a independência não pôde mais ser contida.
Autora: Luna Bolívar Manaut (eh)
Revisão: Roselaine Wandscheer