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Kafka: uma surpresa na reedição da "Carta ao Pai"

Neusa Soliz3 de junho de 2004

Oitenta anos após a morte de Franz Kafka, as memórias de um aprendiz de seu pai acabam com a visão de que ele foi um tirano. Elas estão incluídas na nova edição alemã da "Carta ao Pai".

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Franz Kafka: acerto de contas com o paiFoto: AP

A carta que Franz Kafka escreveu a seu pai em novembro de 1919, mas nunca enviou, é o grande acerto de contas com um tirano. O escritor que morreu há 80 anos, em 3 de junho de 1924, em um sanatório perto de Viena, atribuiu ao pai, Hermann Kafka, os mesmos traços de caráter de um soberano prepotente, capaz de arrasar seus súditos, em qualquer momento, se assim o quisesse.

As memórias do aprendiz

Mas agora surgiu um longo relato sobre esse homem que a posteridade ficou conhecendo como um monstro através dos olhos e da pena do escritor, cuja importância para a literatura contemporânea só foi reconhecida muitos anos após sua morte. Trata-se das recordações do jovem Frantisek Basik, um aprendiz tcheco que trabalhou na loja de Hermann Kafka em Praga. Elas transmitem uma impressão completamente diferente.

Publicada pela primeira vez em 1952, a carta ao pai é um escrito pessoal e subjetivo, que muito serviu para estudos biográficos. Ela foi reeditada agora por Klaus Wagenbach, na Alemanha, incluindo o livro, entre outras coisas, o relato de Basik sobre o período em que trabalhou na loja de acessórios e adereços da família Kafka.

Franka Kafka e Max Brod

Na visão do filho, Hermann Kafka é alguém que caçoa do mais precioso que o subordinado possua, não dá a mínima importância às suas opiniões e que acaba com o amor que este súdito lhe dedique, com sua ironia, seu escárnio e desprezo. Mas esse pai era o único ser que importava no mundo, a medida para todas as coisas. Para Kafka, seu juiz, o destruidor de sua vida, sua desgraça. Esse é o perfil do pai que consta na carta do autor de O Processo, América e O Castelo, obras publicadas postumamente por seu amigo Max Brod.

O próprio Max Brod, aliás, já indicara que a imagem kafkiana não correspondia totalmente à realidade. Que Hermann Kafka, um zé-ninguém que saiu da província e conseguiu montar um bom negócio em Praga, era uma pessoa bastante agradável. Sabia ser generoso com os filhos, possibilitou uma boa educação ao jovem Franz, presenteou-o com uma grande viagem ao fim de seus estudos, e nunca bateu nas crianças - uma raridade na época.

Um professor e companheiro para Franz

Mas as recordações de Frantisek X. Basik, que foi aprendiz durante dois anos e meio na loja de acessórios, informam sobre a vida da família e traçam a imagem de um outro Hermann Kafka, um homem até com senso de humor, que brincou com Frantisek no momento de tomá-lo aos seus cuidados, dizendo que o garoto não servia para a função, pois de tão baixo iria desaparecer detrás do balcão.

O tcheco Frantisek tinha então 14 anos e era cinco anos mais velho do que Kafka, que tinha lá suas dificuldades na escola com o idioma tcheco - sua família era de judeus alemães. Uma das funções de Frantisek era ajudá-lo também nos deveres. Mas, ao que tudo indica, os pais procuravam também uma companhia para o filho, que não tinha amigos.

"Depois de uma hora de aula, um bom café com um pedaço de bolo, ou dois", chegava a hora de ir passear, escreve o ex-aprendiz. E lá iam os dois pelas ruas e vielas de Praga, todos os dias. Mas antes, Franz recebia uns tostões da mãe para guloseimas. Frantisek conta que Kafka sempre dividiu tudo com ele, se bem que "nem sempre meio a meio".

O comerciante tratou bem seu funcionário, levando-o até para passar umas férias com a família - uma alegre interrupção na sua rotina de jovem proletário. "Quem já ouviu dizer que o chefe de um aprendiz leva-o para passar as férias de verão com os filhos!", admira-se Frantisek, 40 anos depois, ao escrever suas memórias. "Em outras lojas, os aprendizes levavam bofetadas e apanhavam por qualquer bobagem."

Quando Frantisek escreveu suas memórias, em 1940, a Carta ao Pai nem sequer havia sido publicada. Kafka já começava a se tornar conhecido, mas Frantisek Basik não tinha a menor idéia disso. Aliás, não tinha o propósito de escrever sobre Franz ou sua família, e sim sobre seus anos como aprendiz numa loja, cujo proprietário casualmente era Hermann Kafka. O detalhe é importante, pois garante sua autenticidade.

Frantisek confirma que o trabalho era duro, o chefe severo, mas "de alguma maneira simpático". "O senhor Kafka era um homem tranqüilo, quase carinhoso..." O contraste com o que relata Franz, que menciona altos gritos, ataques de ira e xingamentos na loja, não podia ser maior.

O fim do idílio

Mas, toda bondade à parte, a felicidade de Kafka com seu amigo não durou muito. Num dos passeios, os dois conversaram sobre as coisas mais importantes em suas vidas. Enquanto para Kafka era a amizade, para Frantisek era "um casamento feliz". E lá veio a explicação de que isso estava relacionado a ter filhos, o que os pais recebiam depois de rezarem juntos.

Novidade que Franz contou imediatamente aos pais, que resolveram acabar de imediato com as aulas de tcheco e os passeios. Afinal, tentativas de um púbere em esclarecer o mistério sexual para o seu pequeno Franz eram algo indecoroso, por mais ingênuas que fossem.

E assim acabou-se o que era doce. O trabalho na loja acabou perdendo o encanto para Frantisek, que procurou outro. E lá se foi o rapaz, deixando Franz Kafka sozinho com sua família e seu pai. E a posteridade com a imagem do pai traçada pelo escritor e só agora retificada com a publicação do seu relato.