Karl May, morto há cem anos, moldou a imaginação dos alemães
30 de março de 2012Com 200 milhões de exemplares de seus 70 livros traduzidos em 40 idiomas e vendidos em todo o mundo, o superlativo Karl May extrapola as dimensões da indústria literária alemã. Goethe e Schiller podem ter produzido obras de dimensões mais elevadas, mas no quesito popularidade, o autor saxão permanece imbatível.
Já no fim do século 19, May era adorado do mesmo modo que os astros da música pop hoje em dia. Durante uma visita a Munique, em 1897, centenas de fãs se acotovelam diante do hotel, e o corpo de bombeiros tem que intervir, para que os bondes possam voltar a circular. Em suas palestras, ele atinge um público entusiástico de ouvintes e leitores: é o ápice da grande carreira de um filho da classe baixa.
Da miséria à criminalidade
Carl Friedrich May nasceu em 25 de fevereiro de 1842, na cidade de Ernstthal, na Saxônia, uma região miserável. A paupérrima família de tecelões tem 14 filhos, dos quais nove morrem ainda na infância. O pequeno Carl contrai cegueira, só se curando da enfermidade aos 5 anos.
Único consolo em meio a tal desolação são as histórias que a avó lê e que o menino absorve avidamente. Estão lançadas as bases para o seu interesse literário. Depois de uma formação fracassada como professor, May se refugia na criminalidade e nos golpes.
Muito antes de se metamorfosear no herói do faroeste Old Shatterhand e no viajante oriental Kara Ben Nemsi, ele inventa nomes para si. Apresenta-se como o oftalmologista Dr. Heilig; na pele do tenente de polícia Von Wolframsdorf, confisca suposto dinheiro falsificado. Ele extorque casacos de pele e até rouba um cavalo, porém sem jamais recorrer à violência. Nos oito anos que passa preso, Karl May devora toda a biblioteca da penitenciária.
Entre realidade e ficção
Após ser libertado, em 1874, ele começa a escrever, aos 32 anos. São tocantes histórias de cunho folclórico para o grande público, aventuras e contos que ele apresenta como relatos de viagem. É o início de uma fantasiosa farsa de sucesso, pois May afirma ter vivido tudo aquilo que narra.
O jornalista Rüdiger Schaper, redator do jornal Tagesspiegel e biógrafo de Karl May, vê aí a consequência lógica de uma progressão gradual: "May escreveu contos breves para editoras popularescas e jornais. Estes se transformaram em livros. De repente, não há mais volta". À medida que cresce seu êxito, o autor cada vez mais penetra na pele de seus heróis.
Ele encomenda fotografias suas, vestido com fantasias variadas. Em palestras, relata "suas" aventuras; as armas das personagens – a "mata-ursos", a "espingarda de prata" e a Henry – são reproduzidas e expostas. May se confunde com Old Shatterhand e Kara Ben Nemsi, suas criações romanescas.
O escritor só irá viajar para as terras distantes muito mais tarde, depois da publicação das histórias do cacique apache Winnetou e das narrativas de viagens pelo Oriente. Na realidade, esses "relatos" e romances nasceram, todos, em sua terra natal, a Saxônia.
Fantasia e entendimento entre os povos
A autoencenação de Karl May parece não ter limites. Em carta a um leitor, ele afirma: "Falo e escrevo francês, inglês, italiano, espanhol, grego, latim, hebraico, romeno, seis dialetos árabes, persa, dois dialetos curdos, dois dialetos chineses, malai, namaqua, alguns idiomas sunda, suaíli, hindustão, turco, e as línguas indígenas dos sioux, apaches, comanches, snakes, uthas, kiowas, além do ketschumany, três dialetos sul-americanos. Não quero incluir aqui o lapão."
Para Schaper, esse tipo de megalomania faz parte dessa personalidade artística e é, de certo modo, característico da época. "Estamos tratando de um artista que vivia num tempo em que personagens loucas não eram raras. Consideremos sem julgamento de valor moral: também Richard Wagner era megalomaníaco e Friedrich Nietzsche, seguramente, também."
Na opinião do biógrafo, o criador de Winnetou segue a trilha dos colonialistas alemães, embora não com um gesto autoritário, e sim em missão cristã. "Karl May constrói colônias de fantasia, colônias que servem à compreensão entre os povos e à paz."
O cristão convicto Kara Ben Nemsi e seu companheiro, o muçulmano Hadji Halef Omar, cavalgam por desertos e montes orientais. Mas o que vivenciam é apenas pretexto para suas detalhadas conversas sobre religião e as diferenças entre as culturas. Apesar dos embates com cruéis vilões, apesar da representação estereotipada dos hábitos de vida orientais, os heróis alcançam entendimento e respeito pelo que é diferente.
"Para Karl May, não haveria dúvida de que o Islã faz parte da Alemanha", afirma Schaper, aludindo a uma polêmica atual no país. E, assim, e autor de séculos passados é, de algum modo, contemporâneo.
Do faroeste ao espaço sideral
Na virada do século, os ataques dos críticos se intensificam. Jornalistas desmascaram as invenções de Karl May e o submetem a numerosos processos. Em sua Vila Shatterhand, em Radebeul, Saxônia, ele escreve: "Tenho vontade de berrar sem cessar, para pedir socorro".
May empreende uma espécie de fuga da realidade para o seu mundo de romances – pelo menos os lugares que ele inventa no início do século 20 são ainda mais distantes do que o Oriente Médio e a América. Segundo o biógrafo Schaper, "com sua obra em duas partes Ardistan und Dschinnistan, o escritor se volta totalmente para a ficção fantasiosa".
May, porém, se mantém fiel a seus heróis. Os amigos Hadji e Kara abandonam a Terra numa nave espacial para pousar num estranho planeta povoado por seres gigantes. Eles cavalgam pelas paisagens do planeta Sitara, idealizado a partir de modelos asiáticos.
O que igualmente se mantém é o tom cristão-humanista de Karl May. Quer no faroeste, no exótico Oriente ou no distante espaço sideral, ele está em busca da justiça, batendo-se pelo entendimento entre os povos e a paz.
Autoria: Günther Birkenstock (av)
Revisão: Alexandre Schossler