Livros para a frente de combate
11 de outubro de 2002Nas comemorações de 150 anos do grupo Bertelsmann, em 1985, tudo parecia muito bem: o conglomerado foi apresentado como uma empresa familiar e cristã, que opôs-se ao holocausto da Segunda Guerra Mundial, tendo inclusive sido uma pedra no sapato dos nazistas por sua proximidade a determinados círculos religiosos críticos ao regime. Em 1944, a editora teria sido, enfim, fechada por razões políticas. Em função disso, Heinrich Mohn – pai de Reinhard Mohn, ainda hoje na direção do grupo – teria recebido, em 1947, uma licença dos ingleses para reabrir sua editora.
Descobertas de um jornalista exigem esclarecimentos
Em 1998, o então presidente do grupo, Thomas Middelhoff, teve a infelicidade de repetir, perante o público, essa versão da história do conglomerado. Isso ocorreu exatamente quando a Bertelsmann incorporava nos EUA a Random House, tornando-se a maior editora norte-americana e um dos grupos de mídia mais influentes do mundo.
Presente ao evento, o jornalista alemão Hersch Fischler, natural de Düsseldorf, suspeitou da versão histórica contada por Middelhoff, tendo pressionado a Bertelsmann a esclarecer o caso posteriormente. Após tentativas de esclarecimentos internos, o grupo se viu obrigado a abrir seus arquivos a uma "Comissão Histórica Independente", que assumiu as pesquisas. Três anos mais tarde, os historiadores finalizaram o trabalho, divulgado em Munique na última segunda-feira (7).
Livros para a Wehrmacht: máquina de fazer dinheiro
No Terceiro Reich, a Bertelsmann imprimiu 19 milhões de livros que foram distribuídos entre os soldados da Wehrmacht, o Exército alemão. De clássicos, passando pela diversão trivial até à propaganda nazista, o grupo foi responsável por cerca de um quarto de todos os volumes que os soldados levavam para as frentes de combate ou que a eles eram enviados. Até mesmo editoras exclusivamente nazistas como a Eher – responsável pela impressão do Minha Luta, de Hitler – não chegaram a registrar tiragens tão altas.
O segredo do enorme sucesso financeiro da Bertelsmann estava no feeling de Heinrich Mohn para o mercado. "Isso pode ser observado, por exemplo, em sua idéia do Clube do Livro, desenvolvida após o fim da Segunda Guerra", comenta Saul Friedländer, professor de História nas Universidades de Tel Aviv e na Califórnia e coordenador da Comissão Independente, criada para pesquisar a história da Bertelsmann durante o Terceiro Reich.
Friedländer rejeita com veemência a lenda de "editora da resistência" criada em torno do grupo alemão. "A produção literária anti-semita perdurou até o fim da guerra. Nesse período, nossas fontes provam que na região onde está localizada a sede da empresa, sabia-se muito bem do extermínio dos judeus no leste do país", resume Friedländer. Os textos mais extremos publicados pela Bertelsmann nos últimos anos da guerra "não ficam atrás, em termos de anti-semitismo, das piores publicações de propaganda nazista", comprova o historiador.
Embora a Bertelsmann tenha sido realmente fechada em 1944, tendo sido impedida de lançar novas publicações no mercado, a tipografia da editora continuou funcionando. Apenas desta forma títulos de importância para a guerra, como Avião no Inimigo (Flieger am Feind), puderam chegar ao mercado.
Uma "empresa muito normal" no Terceiro Reich
A conclusão chegada pela Comissão Independente de Pesquisa foi redigida em dois volumes, cujo conteúdo pode ser resumido brevemente: a Bertelsmann aproveitou do contexto da guerra como nenhuma outra editora alemã. Segundo levantou a comissão, o editor Heinrich Mohn foi o responsável moral por ter-se curvado à Wehrmacht, em função de sua ganância empresarial. Além disso, Mohn não teria se envergonhado de ter trabalhadores forçados - mesmo que em número reduzido – nas instalações da Bertelsmann.
O atual presidente do maior grupo europeu de mídia, Gunter Thielen, desculpou-se publicamente: "Eu lamento que o relato anterior da história tenha tido tantos erros e tantas lacunas. Lamento, além disso, o fato de termos produzido livros, durante a Segunda Guerra Mundial, que são completamente incompatíveis com os valores do nosso grupo".
Reparação pública em curso
O arquivo histórico da Bertelsmann, hoje ainda em Munique sob os cuidados da Comissão Independente, deverá voltar para a sede do grupo de Gütersloh, onde ficará liberado o acesso ao público interessado. O conglomerado anunciou ainda que pretende organizar uma série de debates com testemunhas de seu passado. Além disso, a Berteslmann pretende dar continuidade a pesquisas históricas, com o objetivo de detectar até que ponto os lucros obtidos durante o regime nazista contribuíram para o sucesso comercial do grupo no pós-guerra.
Segundo o historiador Reinhard Wittmann, a Bertelsmann não pode ser tomada como único bode expiatório: "Um comportamento semelhante entre as editoras alemãs no período nazista parece ser ter sido mais a regra geral do que uma exceção. Para as pesquisas históricas, há ainda aqui muito a fazer", finaliza Wittmann.