"Lula sempre soube usar política externa para ter prestígio"
5 de janeiro de 2023Após um cenário de isolamento internacional do Brasil sob Jair Bolsonaro, as expectativas no exterior em relação ao novo governo Luiz Inácio Lula da Silva são grandes. Logo após a posse do presidente, líderes de vários países manifestaram o desejo de fortalecer parcerias com o Brasil, com destaque para o meio ambiente. A esperança depositada no petista em relação à proteção da Amazônia e do clima já havia ficado clara antes mesmo de ele assumir o poder, durante a COP27.
"Com sua ida à COP27, junto com a [atual ministra do Meio Ambiente] Marina Silva, ele sinalizou que o meio ambiente ia ser o principal trunfo do governo dele. O meio ambiente vai representar 80% ou mais do conteúdo da política externa", aposta o ex-embaixador e ex-ministro Rubens Ricupero em entrevista à DW.
Já nos primeiros dias de seu novo governo, Lula anunciou o destino de suas primeiras viagens internacionais: Argentina, no fim de janeiro, e depois Estados Unidos, Portugal e China.
"Lula sempre utilizou, e muito bem, a política externa como instrumento para, também, aumentar seu prestígio dentro do Brasil. Diferentemente de Bolsonaro, Lula se interessa pelas negociações internacionais, ele tem um prazer grande em participar disso", comenta Ricupero, que foi representante do Brasil junto aos órgãos da Organização das Nações Unidas (ONU) em Genebra (1987-1991) e embaixador nos Estados Unidos (1991-1993).
Para o diplomata e ex-ministro do Meio Ambiente e da Amazônia Legal e da Fazenda, o acordo de livre comércio entre a União Europeia (UE) e o Mercosul e uma possível adesão do Brasil à Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) deverão ser encarados com reserva pelo novo governo brasileiro.
Na opinião de Ricupero, o ponto fraco de Lula é sua postura em relação a regimes autoritários como Nicarágua e Venezuela. "A esquerda latino-americana tem dificuldade de evoluir nesse campo. Você tem na América do Sul uma esquerda ainda muito ligada ao anti-americanismo", afirma o diplomata, atual presidente honorário do Instituto Fernand Braudel de Economia Mundial e diretor da Fundação Armando Alvares Penteado (Faap).
DW Brasil: Bolsonaro saiu do país antes da posse de Lula. Como o senhor avalia esse acontecimento?
Rubens Ricupero: Creio que nunca houve na história do Brasil um caso parecido. Talvez só se pareça com o fim do governo militar. O último presidente militar, o general João Figueiredo, não quis passar a faixa, pois considerava o José Sarney um traidor. É um episódio parecido, até mesmo em relação aos personagens, com a recusa de reconhecer a vitória do outro.
No caso do Bolsonaro, é ainda mais grave, pois ele deixou o país. E antes de viajar, nas últimas semanas, havia uma espécie de vácuo, um vazio. Bolsonaro tinha desaparecido, como se não existisse mais. A impressão que as pessoas tinham era de que o novo governo já estava governando, mesmo sem os instrumentos de poder.
Mas, desde o início, Bolsonaro nunca se comportou pelos padrões normais, com a sua falta de cortesia. Assim, a saída dele não surpreendeu. Ele se comportou como é. E o modelo dele é o Donald Trump, e até o fim ele teve uma atitude parecida à do Trump. Só que aqui ele não conseguiu produzir um movimento violento como o da invasão do Capitólio. Pois aqui tinha as ações do [ministro do Supremo Tribunal Federal] Alexandre de Moraes, que também atuou de forma pouco comum, com um ativismo muito forte.
Assim, é um fim muito melancólico esse do governo Bolsonaro.
Logo depois da sua eleição, Lula viajou à COP27. A questão ambiental será importante no governo dele?
Com sua ida, junto com a Marina Silva, ele sinalizou que o meio ambiente ia ser o principal trunfo do governo dele. É um tema dos sonhos, pois ele pode ter ganhos e dividendos muito grandes de imediato, antes mesmo de fazer alguma coisa. E o custo para ele é muito baixo, pois é só aplicar a lei.
O meio ambiente vai representar 80% ou mais do conteúdo da política externa do governo Lula. Nenhuma outra iniciativa pode chegar perto do meio ambiente na caraterística de produzir grandes benefícios, grandes dividendos quase que automaticamente. Basta ele fazer o que fez quando era presidente.
A diplomacia é um ponto forte de Lula?
Lula sempre utilizou, e muito bem, a política externa como instrumento para, também, aumentar seu prestígio dentro do Brasil. A popularidade que ele tinha no exterior, o fato de que ele foi festejado por causa da sua biografia, ele utilizou de forma inteligente, para ganhar prestígio. Nisso ele é muito diferente do Bolsonaro, que nunca deu atenção à política externa e teve uma política de isolamento.
Lula, diferentemente, se interessa pelas negociações internacionais, ele tem um prazer grande em participar disso. E ele não se intimida pelo fato de não falar línguas. Pois em sua carreira como líder sindical ele estava acostumado a lidar com pessoas ricas e poderosas. Claro, um líder sindical que se amedronta diante dos poderosos não tem futuro. Ele sabe que ele é bom nisso, e tem uma autoconfiança muito grande. E é muito sensível nas questões diplomáticas, tem muita intuição.
Governos na Europa, principalmente os social-democratas como o da Alemanha, querem trabalhar com Lula. Isso é uma grande vantagem…
Para Lula, os interlocutores naturais são os social-democratas. Como candidato, fez uma viagem à Europa um ano atrás, e foi recebido por esses social-democratas. Ele sabe que tem afinidade com eles.
E ele tem sorte de ter sido eleito numa época com Joe Biden como presidente dos Estados Unidos. Em termos americanos, Biden é quem mais se aproxima de ser um social-democrata. É um contexto mais favorável do que se ele tivesse sido eleito numa época como a do Donald Trump. Ele vai aproveitar isso, vai usar muito essa cartada.
Mas vejo também uma outra coisa: o acordo de livre comércio [do Mercosul] com a União Europeia e a ideia de o Brasil se tornar membro da OCDE serão encarados com mais reserva pelo novo governo brasileiro.
Pois o PT está mais à esquerda que a social-democracia europeia. Aqui ainda há mais resistência a uma ideologia totalmente liberal ou neoliberal como a da OCDE.
E no caso do acordo UE-Mercosul: como o governo do PT vai tentar, de novo, dar força à indústria, eles encarem esse acordo com certa reserva. Pois, na minha opinião, o acordo é muito desequilibrado, favorecendo muito a indústria europeia, e concede muito pouco em termos de agricultura aos países do Mercosul. Se eu estivesse no governo, também reabriria esse acordo. E o Celso Amorim [ex-ministro das Relações Exteriores de Lula]) já declarou isso várias vezes. Então, nessa área deve haver dificuldades.
E a postura frente a regimes autoritários na América Latina, como Nicarágua e Venezuela? Isso não vai atrapalhar?
É o ponto fraco de Lula. Tenho a impressão de que isso, no caso do PT, representa mais uma herança simbólica e histórica e não propriamente uma prática. Pois o PT sempre aceitou o jogo democrático. Não é um partido de vocação ditatorial como em Cuba, Nicarágua e Venezuela. Mas a esquerda latino-americana tem dificuldade de evoluir nesse campo.
Você tem na América do Sul uma esquerda ainda muito ligada ao anti-americanismo. Eles têm dificuldade de condenar a Rússia, porque tendem a ver o conflito [na Ucrânia] em termos ainda da presença norte-americana. Mas tem exceções:Gabriel Boric, no Chile, é de uma esquerda mais evoluída. Ele condenou a invasão da Ucrânia pela Rússia.
Mas o PT é mais atrasado, Lula vai ter dificuldade nessa área. Já durante o antigo governo dele, ele tomou decisões favoráveis a esses países, como as obras da Odebrecht em Cuba. Naquela época já foi um desgaste para ele. Mas agora o Brasil mudou, há uma presença de uma direita muito mais forte do que naquele momento. Por isso, ele precisa tomar cuidado nessa área.
Como será a relação com a China? Hoje, a China cresce muito menos que 20 anos atrás…
Pois é. Eu acho que o grande desafio do Lula é o desafio de toda pessoa que volta ao governo depois de ter tido êxito e de ter saído durante muito tempo. Ele está voltando ao poder 12 anos depois de deixá-lo. Em 2010, o mundo e o Brasil eram muito diferentes. Basta ver o caso da China.
O êxito de Lula no primeiro governo dele foi a sorte de ser presidente durante o boom das commodities. A alta dos preços das commodities coincidiu com os dois governos dele. Em 2009, no penúltimo ano de mandato dele, a China se tornou o maior parceiro comercial do Brasil. Então, ele capturou aquele período em que a cada ano os preços subiam mais. E foram os anos do descobrimento do pré-sal. Os três principais produtos que o Brasil exporta para a China são soja em grão, minério de ferro e petróleo bruto.
Mas agora já não tem aquele dinamismo de antes. Mas vai haver prioridade para a China, procurando consertar o estrago feiro pelo governo Bolsonaro, que foi muito hostil em relação à China, com ofensas pessoais do filho do presidente. Lula consertará isso, mas não terá mais aquela centralidade. Pois esse período passou.
Lula vai pleitear um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU para o Brasil?
Ele vai querer colocar esse tema em pauta. Mas as grandes potências não têm interesse. A China não tem interesse nisso, pois sabe que o alargamento do Conselho de Segurança significaria, no mínimo, o ingresso do Japão e da Índia. Os americanos de vez em quando dizem que são favoráveis a essa reforma, mas na prática tampouco se interessam.
Além disso, a respeito da guerra na Ucrânia, Lula vai continuar mais ou menos com a linha de Bolsonaro. Em uma votação recente no Conselho de Segurança, do qual o Brasil temporariamente faz parte, o Brasil se absteve. E isso não ajuda. Acho que o Brasil deveria claramente condenar a agressão russa. A atual posição cria dificuldades para o PT. Eu gostaria de uma política externa menos voltada a esse ranço e essa herança esquerdista, que seguramente vai marcar alguns aspectos deste governo.
E como será a importância dos Brics, dos quais o Brasil faz parte?
Os BRICS sempre ficaram frustrados no sentido de que eles não conseguiram definir uma plataforma comum para a reforma da governança do mundo. Eu não acredito que estes Brics tenham um grande papel no futuro. De todos esses grupos que foram criados, o único que me parece ter potencial é o G20. Pois reúne tanto as economias mais avançadas, o G7, como as principais economias emergentes, indo além dos Brics. O potencial dos Brics, portanto, é limitado.