"Mas eu matei você!"
23 de agosto de 2017Em outubro de 1992, no front de guerra de Skelani, perto de Srebrenica, dois soldados se encontram durante um combate. O bósnio muçulmano Daut Tihic é mais rápido e atira no inimigo sérvio, derrubando-o.
Anos mais tarde, no outono de 2006, quando a guerra na Bósnia-Herzegovina já tinha há muito acabado, Daut bebia com amigos em sua aldeia natal, Skelani, quando viu um homem de rosto familiar entrando no bar.
O desconhecido o cumprimentou e se sentou em outra mesa. Daut não acreditava. "Este é o homem que matei", gritou para seus amigos, antes de se levantar, ir até o homem e dizer: "Eu matei você!"
Em outubro de 1992, Daut fugiu com a família de Skelani para as montanhas, indo para o vilarejo de Miljevine. Lá, soube que os sérvios preparavam um ataque contra as aldeias Josevo e Jagodnja. Com um punhado de soldados, foi ajudar na defesa dos moradores.
"De repente, vi a alguns metros de mim um soldado sérvio. Ele se levantou lentamente e se aproximou de mim com uma arma. Eu atirei e o acertei no peito. Ele caiu de costas. Eu estava certo de que ele estava morto."
Depois, correu para a aldeia: "A batalha não durou muito tempo. Nós conseguimos repelir o ataque e defender os moradores. No caminho de volta, eu não vi nem o soldado sérvio nem a arma dele. Eu achava que os colegas dele o tivessem levado embora, porque eu podia ver que se tratava de uma unidade de elite."
O soldado sérvio se chama Dane Vasic. "Para falar a verdade, eu estou sinceramente contente de que ele esteja vivo", afirma Daut. "Assim ele não me pesa na consciência."
E foi assim que eles se conheceram, em 2006, num encontro regado a aguardente, como é costume nos Bálcãs. Os dois são personagens principais do documentário (Ne)Prijatelji (não amigos, em tradução livre), dos diretores bósnios Emir Kapetanović e Sead Kreševljaković. O filme, contando a história dessa amizade inusitada, foi exibido neste mês no Festival de Cinema de Sarajevo.
"Devido aos constantes ataques dessas aldeias, planejamos aquela incursão", lembra o sérvio. "Eu conhecia a área e fui requisitado para sondar o terreno. Era uma operação de rotina. De repente, ouvi ruídos, alguma coisa se quebrando. Eu me virei e vi um homem que apontava uma pistola para mim."
Vasic diz que, a princípio, não sabia de que lado o outro soldado era. "Este momento de indecisão foi crucial para ele. Ele foi mais rápido, senão eu o teria matado. Eu não ouvi os tiros. A última coisa que vi foi o cano da arma dele. Eu senti uma pancada que me jogou vários metros para trás. Quando recobrei os sentidos, vi a coronha destruída da minha arma e meu colete à prova de balas destroçado. Ele me salvou. Eu tive a incrível sorte de permanecer ileso", conta Dane Vasic.
Após o encontro no bar, Daut e Dane não só se tornaram amigos, mas também parceiros de negócios. Eles planejam até mesmo fazer investimentos conjuntos. Dane vive do outro lado do rio Drina, na Sérvia. Ele compra e revende ervas e frutos silvestres, tem um caminhão e possui várias lojas de suvenires.
"Estamos planejando abrir uma empresa comum que combinaria os negócios meus e dele. Nós apresentamos um projeto à administração, mas ainda estamos esperando autorização", diz Daut. Dane assente com a cabeça. "Houve atrasos, não sei por quê. Mas sei que decidimos trabalhar juntos, e tenho certeza de que teremos sucesso."
"Parece que alguns políticos não gostam muito do nosso bom relacionamento e cooperação, eles preferem que estivéssemos brigando e travando guerras, e que cada um de nós viva em seu gueto étnico, para que eles possam permanecer no poder e governar mais facilmente", acredita o bósnio muçulmano Daut.
Eles começaram a falar abertamente sobre quem fez o que e onde durante a guerra. "Não preciso ter vergonha", frisa o sérvio. "Eu não fiz nada de errado ou ilegal, eu era um soldado como ele, atirei nele, ele em mim. Assim é a guerra: você mata para não ser morto. Acho que nem eu nem Daut queríamos essa guerra." Eles concordam que nenhuma guerra jamais trouxe algo de bom.