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Mendigo, Três Vinténs, Malandro: a trajetória de uma antiópera

3 de fevereiro de 2013

Corrupção e injustiça nunca caem de moda. Prova é a saga de quase 300 anos de uma peça de teatro musical, que começa na Inglaterra, passa pelo Brasil e volta à Alemanha. Entre os protagonistas: Gay, Brecht, Weill, Chico.

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Foto: picture alliance / akg-images

A saga começa em 1728. Inspirando-se numa velha ideia de Jonathan Swift (o célebre autor de As viagens de Gulliver), o dramaturgo inglês John Gay decide lançar uma peça situada no submundo em torno da infame prisão de Newgate, Londres. Ele a denomina The Beggar's OperaA ópera do mendigo.

Apesar do título, trata-se, antes, de uma "antiópera". Pois a ballad opera era um gênero de teatro musical satírico que justamente parodiava a grandiloquência temática e musical da ópera italiana, tão apreciada pela aristocracia londrina do início do século 18.

Como era inevitável, a trama, protagonizada por ladrões, prostitutas, policiais corruptos, um magnata do crime, colocava de ponta-cabeça os elevados valores da opera seria. E, além de atacar o status quo – da política à instituição do casamento, passando pelo espírito empresarial –, continha uma série de estocadas especificamente direcionadas ao governo da época, dos conservadores Whig.

Sucesso relâmpago

Para acentuar a atmosfera sórdida e crua da obra, Gay pretendia que as melodias populares, que pontuavam o diálogo, fossem cantadas sem nenhum tipo de acompanhamento. Contudo, preferindo evitar os riscos de tal experimento, cerca de uma semana antes da estreia o diretor do teatro, John Rich, contratou o compositor alemão Johann Christoph Pepusch para arranjar as canções e contribuir com uma pomposa abertura orquestral.

A tragicomédia musical em três atos sobre corrupção, pobreza e injustiça social conquistou o público de Londres: após a estreia, em 29 de janeiro de 1728, ela foi apresentada 62 vezes seguidas no Lincoln's Inn Fields Theatre – a mais longa temporada teatral, até então.

The Beggar's Opera John Gay
Dramaturgo inglês John Gay (1685-1732)Foto: Getty Images

O anti-herói capitão Macheath e a nem tão ingênua Polly Peachum tornaram-se figuras do quotidiano, a partitura logo foi publicada, pôsteres com todas as personagens e retratos da atriz principal tornaram-se suvenires cobiçados. Segundo um dito da época, a Beggar's Opera "made Rich gay and Gay rich" ("fez Rich ficar alegre e Gay ficar rico").

O sucesso foi tamanho que, logo no ano seguinte, Gay e Pepusch lançaram uma sequência, Polly. E a partir de então, a Opera passaria a ser objeto de inúmeras remontagens e adaptações. No século 20, por exemplo, Laurence Olivier estrelou a versão cinematográfica dirigida por Peter Brook; Václav Havel, então futuro presidente tcheco, elaborou uma versão não musical; e diferentes compositores, entre os quais Benjamin Britten, rearranjaram a música.

Berlim, 1928

"Os senhores vão agora escutar uma ópera. Porque esta ópera foi concebida com a pompa que só os mendigos sonham, e porque tinha que ser tão barata que mendigos pudessem pagá-la, ela se chama A Ópera dos Três Vinténs".

Dentre as releituras da peça, a mais célebre é, sem dúvida, Die Dreigroschenoper, de Bertolt Brecht e Kurt Weill. Em 1928, o dramaturgo e poeta radicado im Berlim procurava ideias para a peça que iria reinaugurar o Theater am Schiffbauerdamm (desde 1954 sede do Berliner Ensemble).

Ulrich Tukur als Mackie Messe
Montagem da "Ópera dos Três Vinténs" em Hamburgo, 2004Foto: AP

Sua amiga e colaboradora Elisabeth Hauptmann lhe chamou a atenção para a obra de John Gay, que ganhara nova popularidade na Inglaterra desde o início da década e que ela acabava de traduzir para o alemão. Ambos trabalharam de março a maio na adaptação.

Em seguida, com a data de estreia, 31 de agosto, já às portas, Brecht se retirou com o ainda desconhecido compositor Kurt Weill para a Riviera francesa, a fim de trabalharem nas canções. Após considerar títulos como "Ralé" ou "Ópera do cafetão", Brecht finalmente optou por A Ópera dos Três Vinténs, seguindo a sugestão do colega Lion Feuchtwanger.

Brechtiano avant la lettre

Da Beggar's Opera, os adaptadores alemães não apenas mantiveram a trama básica e os nomes das personagens – Macheath, apelidado "Mackie Messer" ("Mac Navalha"), Polly, Mr. e Mrs. Peachum, Jenny. Na realidade, muito do que hoje se considera característico do treatro épico brechtiano já está contido no original de John Gay.

Em ambas as versões, os atores provocam um distanciamento crítico ao se dirigirem repetidamente ao público, quebrando a tradicional "quarta parede" entre palco e plateia. Tanto em 1928 como em 1728, a improvável conclusão da peça é decidida de forma metateatral: a rigor, Macheath deveria ser enforcado, mas – para não resvalar para a tragédia nem frustrar o público pagante – opta-se em cena por um cínico happy end.

Bertold Brecht
Bertolt Brecht aos 20 anos de idadeFoto: PA/dpa

Brecht e Hauptmann são mais contundentes em sua sátira sócio-política. Enquanto a John Gay bastara criticar e ridicularizar os poderosos em seu teatro, na Berlim da década de 1920 os autores de convicção marxista tinham a esperança de conscientizar e revolucionar a sociedade.

Assim, a certa altura, o criminoso Macheath considera mudar para um ramo de negócios mais fácil e lucrativo, pois, afinal: "O que é uma chave-mestra comparada a uma ação da bolsa? O que é o assalto a um banco comparado à fundação de um banco? O que é o assassinato de um homem comparado à contratação de um homem?".

A partir de 1933, a Ópera entra para a lista negra do regime nazista.

Hauptmann, Weill ou Brecht?

Paralelos à parte, a Ópera dos Três Vinténs possui um indiscutível trunfo na música de Kurt Weill. Longe de um mero pot-pourri, o compositor de origem judaica, então com 28 anos, integrou elementos da música erudita e ritmos atuais da época, do tango ao fox-trot, num estilo musical original e inconfundível, tecnicamente refinado, porém acessível ao gosto popular.

E, de quebra, criava alguns dos maiores sucessos do teatro musical. A Moritat von Mackie Messer, que abre a peça, é oficialmente cotada como uma das melodias mais conhecidas em todo o mundo, regravada centenas de vezes, também em versões estrangeiras, como a norte-americana Mack the Knife.

EVENTS SPANISCH FEBRUAR 2013
Kurt Weill emigrou para EUA após ascensão do nazismo na AlemanhaFoto: Getty Images

Então, tendo essa música tão memorável como veículo poderoso para sua mensagem, por que "Ópera dos Três Vinténs de Brecht-Weill" e não ao contrário? Afinal, como já apontaram alguns, não se fala de "As bodas de Fígaro de Da Ponte-Mozart", nem do "Otelo de Boito-Verdi".

Tal capricho da história da cultura é, em parte, atribuível à dominante personalidade artística de Bertolt Brecht. Porém, é possível que o próprio dramaturgo – cuja prática ética nem sempre acompanhava seus nobres ideais – não se incomodasse tanto com a distorção. Pois, antes mesmo que a Ópera estivesse pronta, ele já estabelecera com sua editora a distribuição dos direitos autorais: 25% para Weill, 12,5% para Elisabeth Hauptmann e gordos 62,5% para si.

Rio de Janeiro, 50 anos mais tarde

Triste realidade: corrupção e injustiça social são temas que nunca caem de moda. E exatamente 250 anos após a criação da Ópera do Mendigo em Londres, um músico e poeta brasileiro pôde provar quão atuais continuavam a temática e a concepção de John Gay.

Chico Buarque de Holanda era velho conhecido da censura. Fora justamente uma peça teatral, Roda Viva, a colocá-lo na mira da ditadura militar em 1967, o que culminaria com seu autoexílio na Itália, dois anos mais tarde.

Copa da Cultura / Chico Buarque / Mart'nália / Doppelkonzert 16.6.06
Chico Buarque situou sua antiópera na Lapa dos anos 1940Foto: Dirk Bleicker/presse

Em 1978, a ditadura podia estar menos virulenta, porém seguia alerta a seus "inimigos". Assim, ao transportar a Ópera dos Três Vinténs para um contexto nacional, o autor cautelosamente situou a ação quase quatro décadas antes, durante a Segunda Guerra Mundial e o regime de Getúlio Vargas.

Anos antes, a primeira sugestão para que Chico adaptasse a obra de Brecht-Weill partira do diretor Ruy Guerra (que em 1986 levaria a Ópera do Malandro às telas). Entretanto, o impulso decisivo veio do então jovem Luís Antônio Martinez Corrêa, que traduzira a Beggar's Opera para o português e iria dirigir a primeira montagem da nova antiópera, no Teatro Ginástico do Rio de Janeiro.

A hipocrisia burguesa, a fácil infiltração das ideologias fascistas, a coincidência entre práticas capitalistas e estruturas criminosas são alguns dos alvos do arguto dramaturgo. Assim como a tendência ao entreguismo e a fascinação cega pelo progresso, no sentido de "moderno-industrial-tecnocrático" – males nacionais que Luiz Werneck Vianna resume no termo "americanismo", em seu apaixonado prefácio à primeira edição da Ópera do Malandro.

Assim, o bairro de Soho se transformava na carioca Lapa, e o vigarista Macheath virava Max Overseas, enquanto seus asseclas portavam nomes reveladores como Johnny Walker, Phillip Morris ou General Electric, de acordo com as respectivas especialidades criminosas.

Chico na Alemanha

Enquanto Weill só adotara uma canção da Beggar's OperaThrough all the employments of life – Chico Buarque recorreu a fontes variadas ao compor sua trilha sonora, numa prática francamente antropofágica. A indefectível Moritat rende duas versões, O malandro e O malandro nº2; o final da peça é uma verdadeira apoteose de melodias célebres do repertório operístico.

Quem é melhor? Brecht-Weill, ou Chico Buarque, letrista e compositor? Questão de gosto, óbvio, e, portanto, supérflua. No entanto, é difícil ignorar a elegância com que a canção Teresinha desenrola sua parábola – em contraposição a sua equivalente alemã, a mal definida Barbarasong.

Brasilien Bettleroper von Chico Buarque in Neukölln Oper Berlin
"Ópera do Malandro" na Neuköllner Oper, em BerlimFoto: Matthias Heyde

Interessante também registrar como o carioca reinterpreta o virtuosístico e atrevido Dueto de ciúme de Lucy e Polly em O meu amor, um lânguido duelo entre as duas rivais. E se a balada de vingança Seeräuber-Jenny já era genialmente cruel, Chico é insuperável na pungência e ironia sutil de Geni e o Zepelim.

Por fim, 35 anos mais adiante, um círculo se fecha, com a primeira encenação alemã da Ópera do malandro, estreada em 31 de janeiro de 2013 na Neuköllner Oper, de Berlim. Seus adaptadores – a também diretora Lilli-Hannah Hoepner, a brasileira Luciana Rangel e Bernhard Glocksin – optaram por manter as canções no original, com legendas, a fim de preservar a musicalidade dos textos de Chico Buarque.

Autor: Augusto Valente
Revisão: Soraia Vilela