Museu em Berlim "ressuscita" monumentos controversos
30 de junho de 2020Muito antes de manifestantes em Bristol, Inglaterra, lançarem ao rio uma estátua do comerciante de escravos do século 17 Edward Colston, Berlim já discutia o que fazer com os monumentos de um passado complicado.
A pressão para tal, no entanto, não partiu das vítimas da opressão saindo às ruas, mas dos vencedores da opressão ocupando-as. Logo após o fim da Segunda Guerra Mundial, as potências aliadas estacionadas em Berlim ordenaram a remoção de monumentos que louvassem o caráter nacionalista e militar da Alemanha.
Recuperados e parcialmente restaurados, muitos deles estão agora expostos na Zitadelle Spandau, uma fortaleza do século 16 situada num bairro do oeste de Berlim, onde militares alemães testavam armas químicas durante a Segunda Guerra. Os objetos se encontram numa espécie de purgatório de estátuas: nem destruídas nem reverenciadas, elas compõem a exposição Enthüllt: Berlin und seine Denkmäler (Revelados: Berlim e seus monumentos), aberta ao público desde 2016.
"Trata-se de uma oportunidade de não esquecer essa história, não deixá-la desaparecer", explica Urte Evert, diretora do museu desde 2017. "Em vez disso, podemos mostrar que há raiva, tristeza e até violência. E espero que possamos fazer algo com isso ao tornar essas obras acessíveis como são."
A maioria delas ficava ao longo da antiga Siegesallee, uma importante alameda construída por decreto imperial na virada do século 20, que hoje é uma trilha pelo parque Tiergarten. Dezenas de estátuas a decoravam de ambos os lados, representando séculos de líderes políticos e religiosos alemães.
A região e seus monumentos foram fortemente danificados na Segunda Guerra, alguns foram destruídos. Os que resistiram foram deslocados, escondidos ou enterrados. Eles tiveram que ser recuperados, parcialmente restaurados e transportados para a exposição.
Monumentos em contexto
Enthüllt inclui cerca de 100 exemplares das muitas encarnações da Alemanha ao longo dos séculos, cobrindo toda a era imperial desde a pré-unificação em 1871 até a Primeira Guerra Mundial, além de coleções menores do período nazista e da Alemanha Oriental comunista, extinta em 1990, após a queda do Muro de Berlim e a reunificação do país. Com a ajuda de uma grande tela sensível ao toque, visitantes também podem explorar centenas de outros monumentos que permanecem nas ruas de Berlim.
Cada época vem com sua própria bagagem. Enquanto os crimes nazistas estão arraigados na autopercepção alemã do pós-guerra, 30 anos após a reunificação o país apenas começa a analisar com mais atenção como suas partes oriental e ocidental se reuniram.
Segundo Evert, um ponto de discórdia é a cabeça desmembrada de Vladimir Lenin, de uma estátua de 18,6 metros de altura, que agora se encontra no fim da exposição. Alguns visitantes oriundos da antiga Alemanha Ocidental criticam a presença do objeto por o considerarem uma homenagem ao líder soviético, enquanto outros da parte oriental o veem como um símbolo da sucumbência do Leste ao Oeste, pois Lenin está caído, na posição em que foi encontrado.
"Todos os monumentos devem ser constantemente discutidos de novo. Nunca se pode dizer: 'Esta é a única maneira correta e ponto final', opina Evert. "Mas isso permite uma discussão sobre as feridas entre Leste e Oeste que estão se abrindo novamente."
Alemanha e o comércio de escravos
Protestos globais provocados pelo assassinato de George Floyd têm mirado ou derrubado monumentos que críticos há muito acusam de glorificar figuras nacionais fazendo vista grossa das convicções e políticas racistas de tais personalidades. Isso trouxe um novo foco a exposições como Enthüllt, embora a diretora do museu reconheça que a história colonial da Alemanha não desempenha um papel tão grande na Zitadelle. Isso não significa, porém, que tais monumentos não existam.
"Aquela época nunca foi muito presente na Alemanha", afirma Evert, referindo-se ao período colonial oficialmente situado entre 1884 e 1918. No entanto o envolvimento dos alemães no tráfico de escravos data desde o início do século 17, quando Frederico Guilherme, duque da Prússia, estabeleceu uma base na África Ocidental. Na atual Gana, ele construiu um forte que acabou se tornando um eixo para o comércio transatlântico de escravos.
Hoje uma estátua em homenagem a Frederico Guilherme recebe os visitantes no Palácio de Charlottenburg, no oeste de Berlim. Ele é apresentado a cavalo, com quatro figuras acorrentadas olhando para ele. Pouco se cogita transferir um monumento desses para uma mostra como a de Spandau, e o fato de as autoridades o deixarem lá, em sua glória original, contraria muitos. Diversos monumentos a comerciantes de escravos e líderes colonias também adornam muitas partes da Alemanha.
"O que querem nos mostrar com monumentos como este?", pergunta Mnyaka Sururu Mboro, fundador do grupo sem fins lucrativos Berlin Postkolonial. "Eles nos lembram da escravidão. E no entanto essas figuras ainda estão lá, sendo honradas."
Para Mboro, a exposição da Zitadelle Spandau é uma maneira de direcionar a atenção do público para uma história problemática. Ele também gostaria que as estátuas existentes permanecessem onde estão, mas com informações adicionais sobre a história racista e colonial, e quem sabe até monumentos contrários louvando líderes africanos contemporâneos e figuras da oposição.
"Destruir essas estátuas não vai funcionar", admite, embora reconhecendo a dor e ira que tem movido os manifestantes nas últimas semanas. "Mas a história toda não está lá. É preciso haver contexto."
Evert espera expandir a exposição ao longo do tempo. Sua equipe trabalha com pesquisadores da Alemanha e ativistas dos Estados Unidos para discutir como os monumentos podem ser melhor apresentados, e se sequer devem ser expostos. O trabalho real, porém, precisa acontecer fora do museu: "Espero que possamos lidar com essas estátuas não apenas como símbolos, mas com os problemas por trás delas, para que a sociedade possa avançar", pondera.
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