"Não é surpresa que europeus comprem madeira ilegal"
18 de novembro de 2020Pressionado dentro e fora do Brasil pela alta do desmatamento e das queimadas, o presidente Jair Bolsonaro ameaçou, durante encontro do Brics (grupo formado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) nesta terça-feira (17/11), divulgar uma lista de países que comprariam madeira ilegal da Amazônia.
Transações do tipo são conhecidas e denunciadas há tempos por organizações não governamentais e pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib).
Em 2019, a ONG Amazon Watch e a Apib lançaram um relatório que listou empresas brasileiras multadas por crimes ambientais na Amazônia e onde os produtos que elas comercializavam foram parar.
O relatório, intitulado Cumplicidade na Destruição: como os consumidores e financiadores do Norte permitem o ataque do governo Bolsonaro à Amazônia Brasileira, analisou 56 empresas brasileiras que foram multadas por crimes ambientais na Amazônia desde 2017 e identificou empresas estrangeiras que fazem negócios com elas.
Quanto à madeira, o levantamento identificou no Brasil as empresas Benevides Madeiras & Argus, Tradelink Madeiras e Nordisk Timber Eireli - Edma Lamounier Barros como exportadoras que vendem para 14 empresas na Bélgica, Holanda, Dinamarca, França, Reino Unido e Estados Unidos
Mais recentemente, em outubro, a Apib mostrou de onde vem o dinheiro que investe em empreendimentos na Amazônia que têm causado conflitos socioambientais e destruição. Gigantes como BlackRock, Citigroup, J.P. Morgan Chase, Vanguard, Bank of America e Dimensional Fund Advisors apareceram no relatório.
Para Dinaman Tuxá, advogado e coordenador executivo da Apib, a flexibilização das leis ambientais, a falta de fiscalização e a participação de empresas brasileiras que transformam, por meio de fraude, madeira ilegal em legal são problemas que devem ser combatidos.
"Nós também alertamos a comunidade internacional sobre a importância de os governos penalizarem essas empresas que vêm promovendo a destruição na Amazônia", defendeu em entrevista à DW Brasil.
DW: O presidente Jair Bolsonaro ameaçou divulgar uma lista com países que comprariam madeira ilegal da Amazônia. Por outro lado, esse parece ser um tema conhecido por vocês, que lançaram em 2019 o primeiro relatório que trazia nomes de empresas na Europa e Estados Unidos ligadas a ilegalidades na Amazônia. Como chegaram aos nomes?
Dinaman Tuxá: Lançamos um primeiro relatório dando o nome das empresas ligadas à cadeia do desmatamento ilegal no Brasil em 2019 e, em 2020, lançamos outro.
A gente fez o mapeamento da rastreabilidade dos produtos, de onde eles saíam, e os principais mercados compradores. Fizemos uma análise dos contratos e acordos - aliás, alguns contratos tinham cláusulas de restrição de publicidade. Fomos buscar essas informações por meio dos contratos firmados entre países e as principais empresas que produzem e exportam da Amazônia, principalmente oriundas do agronegócio brasileiro.
Foi difícil ter acesso às informações?
Sim. Foi um trabalho muito minucioso, até porque são contratos bilionários. Então não é tão fácil acessar as informações, já que as empresas de outros países colocaram essas cláusulas de não divulgação dos acordos. Foi muito trabalho principalmente da ONG Amazon Watch, que fez o levamento, que foi buscar as empresas e o público consumidor desses produtos.
Como a exportação de madeira ilegal acontece por meio de empresas brasileiras?
A rota da madeira ilegal consiste numa série de crimes. Em algum momento, essa madeira acaba se tornando legal, com falsificação de documentos. Há cúmplices, principalmente no Brasil, que fazem a certificação como se fosse legal.
É um ciclo criminoso de várias infrações que, além da destruição, perpassa o procedimento administrativo fraudulento para chegar ao mercado consumidor, a países na Europa e nos Estados Unidos.
Aqui no Brasil, o que houve foi um enfraquecimento da política ambiental que flexibilizou, inclusive, a extração e o transporte da madeira. O que nós estamos vendo é o aumento da devastação proveniente dessa flexibilização da política ambiental.
Na verdade, essa flexibilização vista hoje se iniciou no período de campanha de Jair Bolsonaro, se concretizou com a tomada de posse do presidente e se acirra no campo político este ano com vários recursos, inclusive com o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, querendo "passar a boiada" em diversas pautas ambientais.
No fim de 2019, inclusive, o governo tentou aprovar a exportação de madeira in natura, nativa da Amazônia, sem beneficiamento. Seria um incentivo ao mercado ilegal, na visão de vocês?
Com certeza. Esse governo é totalmente contraditório.
Na verdade, ele ameaça divulgar uma lista de países que compram madeira ilegal do Brasil porque ele está sendo pressionado por grandes potências a mudar a sua política ambiental. Então ele está tentando, de alguma forma, constranger esses países consumidores.
Mas é totalmente contraditório, porque, ao mesmo tempo que ele tenta expor uma situação, ele flexibilizaria e incentiva, de um certo modo, o aumento da extração ilegal da madeira.
O governo faz um embate a favor do corte da madeira, ele é a favor do aumento desse mercado e agora está tentando criar um fato político porque está sendo pressionado no campo internacional.
No relatório mais recente lançado por vocês, divulgado em outubro, vocês relacionaram empresas implicadas em violações de direitos indígenas e conflitos em seus territórios no Brasil. Qual foi a reação às denúncias?
Nós apontamos que 18 bilhões de dólares são investidos no país, principalmente no agronegócio, mineração e grandes empreendimentos na área de geração de energia. A BlackRock, por exemplo, é o principal financiador, que está aqui no Brasil explorando principalmente ganhos no agronegócio.
Nós percebemos que houve um aumento gradativo do avanço dessa produção, principalmente do agronegócio, e da extração ilegal do minério, nos últimos dois anos. E, consequentemente, houve aumento de invasões das terras indígenas, do desmatamento em áreas de conservação nesse período.
Nós percebemos que há financiamento internacional, por isso buscamos quem são esses grupos econômicos que estão financiando a destruição da Amazônia brasileira. Fomos pegos de surpresa, porque descobrimos que são várias instituições, em especial a BlackRock, que está sendo cúmplice da destruição na Amazônia e do genocídio no Brasil.
A BlackRock se manifestou dizendo que o financiamento deles segue todos os padrões e normas que respeitam os tratados internacionais de direitos humanos, mas, na prática, não é o que percebemos.
Esse aumento do desmatamento que vemos na Amazônia se dá em nome de alguma coisa. Esse algo é o capital, é o avanço do agronegócio, da extração de madeira, de grandes empreendimentos, da mineração. E esse avanço está sendo financiado por essas grandes corporações e financiadoras.
Essa identificação foi mais fácil: analisamos as obras em questão, o impacto que elas causam e quem está executando e financiando.
[Nota do editor: O relatório Cumplicidade na Destruição III – Como corporações globais contribuem para violações de direitos dos povos indígenas da Amazônia Brasileira, de 2020, listou seis instituições financeiras americanas, BlackRock, Citigroup, J.P. Morgan Chase, Vanguard, Bank of America e Dimensional Fund Advisors, que investiram mais de bilhões de dólares entre 2017 e 2020 em empresas que têm envolvimento com invasões, desmatamento e violações de direitos indígenas na Amazônia.]
Ou seja, não deveria ser surpresa para ninguém, inclusive para o governo, a ligação indireta de empresas e países estrangeiros com essa cadeia de ilegalidade?
Não, não é surpresa para ninguém. Nós alertamos a comunidade internacional sobre a importância de os governos penalizarem essas empresas que vêm promovendo a destruição na Amazônia. Nós fizemos um tour por países denunciando essas práticas das grandes corporações e empresas, mas o governo brasileiro nunca quis dialogar sobre esse ponto.
Pelo contrário: ele sempre fortaleceu essa ideia de investimento, trazer mais empresas que comungam com a ideologia política desse governo principalmente na destruição.
Nós, povos indígenas, sempre fizemos esse papel de denunciar as principais empresas que têm essa prática, os que financiam e os que fazem extração ilegal de madeira.
Nós exigimos de países, da União Europeia em especial, que fizessem a rastreabilidade e penalizassem as empresas que financiam ou que compram produtos oriundos do desmatamento ilegal no Brasil. Muitos países já sinalizaram essa preocupação em criar mecanismos legais, dentro do ordenamento jurídico interno, pra tentar rastrear e penalizar empresas que financiam a destruição da Amazônia.
Na visão da Apib, o que deveria ser aprimorado para inibir essas ilegalidades?
É preciso que a legislação ofereça penas mais severas a empresas e pessoas que praticam crimes ambientais.
O segundo passo é aumentar a fiscalização, fortalecer as instituições que têm o dever de proteger o meio ambiente, como Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) e Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Renováveis (Ibama). Envolver mais a sociedade civil nesse enfrentamento com políticas de conscientização, falar sobre a importância da floresta em pé, do meio ambiente, também é fundamental.
Demarcar terras indígenas como instrumento de enfrentamento a isso. Hoje, as terras indígenas são as áreas mais preservadas do mundo, isso é comprovado cientificamente.