Na hora da morte
8 de outubro de 2003Um controle de gastos realizado por um plano de saúde no norte da Alemanha levantou suspeitas de que uma médica da Clínica Paracelsus, perto de Hanôver, teria provocado a morte de mais de 70 pacientes cancerosos através de altas doses de morfina. O caso está sendo investigado pela Promotoria, que encomedou a peritos um nova avaliação. O plano de saúde baseou-se em relatórios de peritos sem experiência na área de tratamento de dores, segundo a clínica, que saiu em defesa da médica.
Tratamento de dores é negligenciado
A Associação de Médicos advertiu contra uma "caça às bruxas", isto é, uma condenação prévia da colega. "Há médicos bem formados em medicina paliativa e eles não podem ser endemonizados", disse Frank Ulrich Montgomery, presidente do grupo de médicos contratados em hospitais. Segundo ele, os médicos muitas vezes estão diante de um dilema, no tratamento de dores em pacientes terminais.
"Trata-se de avaliar os efeitos colaterais dos analgésicos. Esse risco é admissível, frente ao risco das dores? A decisão é das mais difíceis", admite. Montgomery considera a medicina paliativa e a terapia de dores os "primos pobres" do sistema de saúde na Alemanha. Há poucas instituições voltadas para o tratamento de dores e muitos planos saúde ainda se recusam a arcar com os custos de terapias há muito reconhecidas pela classe médica. "Nesse aspecto temos um déficit na Alemanha", conclui.
Medicina paliativa: baixo consumo de morfina
O objetivo da medicina paliativa é amenizar o sofrimento de pacientes terminais ou gravemente enfermos, para os quais não há perspectiva de cura. O uso de morfina, analgésicos ou opióides visa melhorar a qualidade de vida do paciente até sua morte. "Nenhum paciente morre antes da hora porque os médicos receitam morfina para aliviar as dores", disse Thomas Nolte, vice-presidente da Sociedade Alemã de Analgesia, em entrevista, tentando desfazer temores.
A questão é que o uso de morfina e opióides é regulamentado na Alemanha por uma lei que já sofreu várias emendas, mas data basicamente do início do século 20. Ópio e morfina eram as drogas da época e, ao que tudo indica, a sombra dessa dependência ainda permanece na memória de muitos que desconhecem seus efeitos terapêuticos. Os médicos alemães são mais do que econômicos na hora de receitar opióides ou substitutos, no que os planos de saúde também são co-responsáveis.
O consumo de morfina para tratamento de dores na Alemanha é um dos mais baixos da Europa: dez quilos por ano, por cada milhão de habitantes (no total 800 quilos, com uma população em torno de 80 milhões). A lista é encabeçada pela Dinamarca, com 83 quilos, seguida pela Suécia (49), Grã-Bretanha (30) e França (28). Na Grã-Bretanha há muito mais instituições de cuidados paliativos para acompanhar as pessoas na fase terminal, os chamados hospices, o que explica o maior consumo de morfina. Criados a partir de 1967, elas procuram aliviar sintomas de enfermidades graves e permitir uma morte digna, sem a parafernália das UTIs, se o paciente assim o desejar, e tendo convívio com a família.
Eutanásia e morte com dignidade
Na Alemanha, onde a eutanásia ativa é proibida, o médico que aplica uma injeção mortal corre o risco de ser acusado de homicídio culposo. A eutanásia é passiva ao se disponibilizar um medicamento letal. Nesse caso, o crime é de "homicídio atendendo a desejo", passível de pena entre seis meses e cinco anos de prisão.
Mas um paciente terminal pode rejeitar medidas médicas que prolonguem desnecessariamente a vida, pois há uma brecha na legislação. O melhor é deixar tudo por escrito nas chamadas "disposições do paciente" (Patientenverfügung). Assim se evita que a decisão de desligar os aparelhos caiba aos médicos ou familiares, em caso de acidente grave, coma, demência ou graves distúrbios psíquicos.
Muitos alemães, contudo, não sabem dessa possibilidade. Nesse sentido, pode ser positiva a discussão atual, que deixou muita gente preocupada com o que o futuro lhe reserva na hora da morte. Embora apenas 15% dos alemães rejeitem a eutanásia, os políticos não se atrevem a legalizá-la. Um "falso paralelo com a época do nazismo" faz com que os políticos até hoje tenham medo de tratar desse tema complexo, segundo Kurt Schobert, da Sociedade Alemã em Prol da Morte com Dignidade. O regime nazista determinou o assassínio de doentes crônicos, deficientes físicos ou mentais, sob o nome de Euthanasie. Tal palavra desapareceu até do vocabulário alemão e a eutanásia hoje é Sterbehilfe (auxílio para a morte, literalmente).
O doloroso fracasso dos políticos
A ministra da Justiça, Brigitte Zypries, tornou a negar a necessidade de legalizar a eutanásia ou despenalizar a sua forma passiva. Em vez disso, ela propôs mais esforços para proporcionar aos pacientes terminais um bom acompanhamento e terapias contra dores. Também deverá ser estudado como aperfeiçoar as leis no que se refere a esse tipo de testamento que são as "disposições do paciente".
Eugen Brysch, da Fundação Hospiz, não põe muita fé nos discursos políticos, mas concorda em que não há necessidade de uma nova lei. "Precisamos, isso sim, de um melhor gerenciamento de qualidade na terapia de dores para pacientes terminais". Atualmente somente 2% dos pacientes têm chance de receber um tratamento adequado contra dores e somente 4% conseguem ser admitidos em uma dessas clínicas especiais. Brysch acha que muitos alemães são a favor da eutanásia por não estarem informados das alternativas. "O alto índice de aprovação da eutanásia ativa atesta o fracasso dos políticos", conclui.