"Negação e descrença são parte da história do Brasil"
12 de junho de 2017O complexo sistema de desvio de verbas públicas, escancarado pela Operação Lava Jato, em março de 2014, revigorou um amplo debate sobre as origens da corrupção no país. A concepção distorcida entre privado e público esteve, mais uma vez, no cerne de uma questão antiga, mas que ainda não atingiu nenhuma resolução. A corrupção pode ser considerada um mal iniciado com a proclamação da República, em 1889?
Para a historiadora Laura de Mello e Souza, essa discussão deve incluir, também, o Brasil colonial. "Todo sistema colonial pressupõe doses variáveis de corrupção", afirma a professora aposentada da Universidade de São Paulo e cátedra de História do Brasil na Universidade de Sorbonne, em Paris.
Em entrevista à DW, ela analisa o enriquecimento ilícito de autoridades ainda sob domínio português e a escravidão como fator decisivo para a desigualdade social brasileira.
DW: É possível dizer que corrupção endêmica que assola o país, e que expõe a contraditória relação entre público e privado, apontadas por Sérgio Buarque de Holanda e Silvio Romero, ganhou consistência ainda sob domínio português?
Laura de Mello e Souza: Todo sistema colonial pressupõe doses variáveis de corrupção. Comporta o "spoils system": os funcionários coloniais não ganham muito, mas, em compensação, fazem negociatas vantajosas nas terras coloniais, e o poder central fecha os olhos, porque ninguém quer desempenhar funções administrativas em regiões longínquas e onde o sistema imunológico dos europeus mostra-se frágil. Dizia-se, no império português entre os séculos 16 e 18, que uma nomeação para a África equivalia a uma sentença de morte... Descontando-se o exagero, fossem franceses, ingleses, holandeses, espanhóis ou portugueses, os funcionários coloniais dos impérios europeus esperavam enriquecer nos seus postos, e a maioria enriquecia mesmo. A escravidão moderna, adotada pelos portugueses, também complica o cenário, mas não explica tudo sozinha. Ela baralha os limites do público e do privado, sendo parte constitutiva do sistema colonial do antigo regime. Mas é preciso deixar claro que ingleses e franceses traficaram escravos intensamente e construíram sua riqueza imperial sobre a escravidão.
O acirramento político crescente no Brasil tem gerado grande hostilidade em diferentes níveis: na sociedade, nas instituições democráticas, no Congresso. Essa agressividade é fruto de processos não resolvidos, como a escravidão e a baixa diminuição nos níveis de desigualdade social?
É cedo para dar explicações únicas e fechadas. Os meios de comunicação e as mídias sociais estimulam as reações violentas e as manipulam. Vivemos uma época de extrema violência. Os discursos políticos são violentos. O Brasil, com sua sociedade desigual e suas elites políticas incultas, é um espaço privilegiado para a proliferação da violência. Não me incluo, contudo, entre os que procuram razões únicas, explicações monocausais. O passado escravista obviamente não ajuda. Mas já o poderíamos ter liquidado, ou minorado seus efeitos se houvéssemos construído uma sociedade mais igual e mais educada.
Em 2018, completamos 130 anos desde que a princesa Isabel assinou a Lei Áurea. Por que evoluímos tão pouco nas relações raciais?
Considerando o ponto de vista do historiador, as mudanças não foram tão poucas assim. Hoje em dia o racismo é crime, e isso é um grande passo. Atitudes racistas são punidas com a lei. Contudo, não penso que a situação iníqua que persiste no que diz respeito aos brasileiros negros e mestiços possa ser atribuída unicamente ao racismo e à escravidão. Ela é fruto da profunda desigualdade econômica e do descaso para com políticas públicas que favoreçam as populações carentes. Sem investimento maciço na educação não se chega a uma sociedade mais igual, nem à superação do racismo à brasileira, que é extremamente sutil e incide principalmente sobre os negros e mestiços pobres.
As conquistas políticas brasileiras no período colonial tinham como artificio principal a luta armada, a revolta, restringindo a participação política a poucos cidadãos. Esse cenário de exclusão restringiu o poder a uma elite que segue dominante até hoje?
As revoltas do passado tiveram, muitas vezes, protagonismo maciçamente popular. Há guerras de índios, do sertão nordestino a Goiás. Canudos e Contestado não foram movimentos de elite. Os quilombos contavam-se às centenas em várias regiões brasileiras. Já a participação política foi extremamente restritiva, mas, apesar de não conhecer o assunto, não penso que fosse muito diferente do sistema político existente em outros estados ocidentais. Depois, a elite dominante hoje é diferente da que foi dominante em diversos momentos do passado. Essa que temos hoje pode ser comparada à da República Velha? Não penso. No Brasil há um intenso fenômeno de circulação das elites, sobretudo nas regiões mais ricas. O desalentador é que as novas elites incorporam a maior parte dos vícios e preconceitos das antigas.
Esse estigma de negação e descrença que tem acompanhado o Brasil é um fato novo na história nacional ou ele encontra diálogo no período colonial?
A negação e a descrença são fenômenos pendulares da nossa história. Somos um povo ciclotímico, passamos da euforia à depressão, sem estágio na justa medida. Ou somos o país do futuro, ou repetimos que "isso só podia acontecer no Brasil". É uma tradição lusitana. Os portugueses reclamam o tempo todo de si mesmos. Estamos, portugueses e brasileiros, eternamente na beira do abismo. E a situação colonial não ajudou muito: o poder real sempre distante, meio inacessível, representado por funcionários que passavam um tempo na terra e iam embora, mais ricos, de preferência. O estatuto colonial traz consigo a ideia da exploração desenfreada e da terra colonial como lugar de passagem.