No ar, o passageiro transparente
18 de agosto de 2003Data da reserva, agência de viagem e funcionário responsável, número e prazo de validade do cartão de crédito, itinerário, histórico de viagens. Além de dados pessoais, como nome, endereço, telefone, e-mail e até preferências culinárias. Estes são apenas alguns dos 40 campos de dados sobre passageiros que as empresas aéreas da Europa deverão colocar à disposição da alfândega norte-americana, caso a Comissão da União Européia ceda às exigências dos EUA.
O procedimento está em discussão, devendo ser decidido em setembro próximo. Uma deputada do Parlamento Europeu, a holandesa Johanna Boogerd-Quaak, ameaça processar a Comissão da UE, caso esta se curve à exigência norte-americana. Segundo Boogerd-Quaak, o serviço secreto daquele país já estaria baixando livremente dados dos chamados passenger name records (PNR).
Primeiro os muito maus
Cerca de 11 milhões de passageiros por ano são vítimas potenciais desse esquema de transferência de informações, impensável antes de 11 de setembro de 2001. As autoridades dos EUA se reservam o direito de ampliar a lista dos campos de dados, de acordo com o atual grau de risco, além de poder armazená-los por um prazo de sete anos e utilizá-los no sistema de controle de passageiros CAPPS II. Após este período, os dados ainda seriam mantidos durante mais oito anos num arquivo denominado Deleted record file.
Segundo Steve McHale, do Departamento de Segurança de Transportes dos EUA, o CAPPS permitirá "realizar uma análise e avaliação de risco, assim como identificar terroristas". No espaço de cinco segundos, os dados serão cotejados com "o melhor material do serviço secreto americano sobre terroristas", e o passageiro, colocado numa das três categorias de periculosidade: "verde" – de risco mínimo –, "amarela" – exigindo medidas de segurança –, ou "vermelha" – que implica acionar o pessoal de segurança para uma eventual detenção.
O sistema pode ser reduzido à seguinte fórmula: primeiro os muito maus, depois os nem tão maus assim. Protestos nos EUA levaram à suspensão dos testes com o CAPPS II, para que sejam implementadas medidas de proteção de dados. Contudo estas se aplicam exclusivamente a cidadãos norte-americanos, não a estrangeiros.
Do terrorismo à espionagem industrial
O ex-comissário da UE para Assuntos Externos Chris Patten aceitara em fevereiro passado o acerto ilegítimo que dá ao serviço secreto dos EUA acesso aos bancos de dados de companhias como a Lufthansa, Air France e British Airways. Embora tendo agido para evitar a proibição de pouso para os vôos europeus nos EUA, Patten foi afastado do cargo, logo após a decisão. Atualmente o comissário Frits Bolkenstein representa a UE nas negociações.
O vice-presidente do Parlamento Europeu, Gerhard Schmidt, classificou as exigências dos órgãos de segurança dos EUA pura e simplesmente de "chantagem econômica com nossas linhas aéreas". Especialistas em proteção de dados exigem que a determinação de fevereiro tenha validade apenas temporária.
Apenas um pacote de dados rigorosamente definido seria transmitido, no máximo, 48 horas antes da partida do vôo, e as autoridades norte-americanas dependeriam de que os dados lhes sejam enviados, não podendo baixá-los diretamente. Além disso, o período posterior de armazenamento deverá limitar-se a algumas semanas, exigem os peritos do setor.
Entre outros pontos de crítica está a possibilidade de usar para a espionagem industrial os conhecimentos supostamente armazenados em nome do combate ao terrorismo. Para Carsten Bange, diretor-geral do Business Application Research Center de Würzburg, a freqüência com que uma firma reserva vôos para certo país, por exemplo, pode ser um indicador de eventuais negociações no exterior.
Resistência e inspiração
Não se pode dizer que haja verdadeira resistência no Velho Continente contra a medida, considerada ilegal. Dentre as companhias aéreas, apenas a Alitalia rebelou-se contra a determinação. Contrariando as expectativas, ela não foi punida com proibição de pouso em território norte-americano.
A encarregada de Proteção de Dados da Renânia do Norte-Vestfália, Bettina Gayk, responsável pela Lufthansa, recebeu apenas sete queixas contra a medida, até hoje. Todas de passageiros preocupados com a possibilidade – meramente técnica – de que a medida pudesse ser também aplicada a vôos fora dos EUA. Segundo Gayk, não se constatou qualquer caso do gênero.
Para outros países, não basta curvar-se às determinações de Washington: elas servem até mesmo de inspiração. Assim, em março passado, a Espanha sugeriu que os defensores europeus da lei também passassem a ter acesso aos dados dos passageiros aéreos, para um melhor combate à imigração ilegal e ao terrorismo.