O dilema de denunciar familiares após atos golpistas
11 de janeiro de 2023Desde o último domingo (08/01), Valéria* não sabe do paradeiro dos primos, que deixaram São José dos Rio Preto, interior de São Paulo, nos primeiros dias do ano para acampar em frente a um quartel em Brasília.
"Sabemos que eles foram detidos pela Polícia Federal. Minha prima mandou uma mensagem para a família, e depois ninguém mais soube nada. Parece que o irmão dela, meu primo, estava no meio do quebra-quebra", conta Valéria por telefone à DW, referindo-se à invasão e depredação das sedes dos três Poderes, em Brasília, por apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro.
Embora esteja empenhada em buscar informações para acalmar a família, Valéria lida com a desconfiança dos parentes, todos bolsonaristas. "Eles acham que eu não sou boa pessoa por não compactuar com a visão deles", conta.
Aos poucos, a Secretaria de Administração Penitenciária do Distrito Federal tem divulgado a lista de presos após os atos violentos do último domingo. Segundo o Ministério da Justiça, cerca de 1.500 pessoas foram detidas e serão ouvidas pela Polícia Federal.
O nome do pai de Anderson* não apareceu na lista. Os dois romperam laços desde o primeiro turno das eleições presidenciais que deram vitória à Luiz Inácio Lula da Silva, e o filho não tem certeza se o pai foi até Brasília para participar da tentativa de golpe de Estado.
"Se ele tivesse sido preso, eu não sei o que faria, se eu deixaria ele lá para aprender", diz.
Aposentado, o pai de Anderson frequentava o acampamento montado por bolsonaristas em frente ao Comando da Aeronáutica de São José dos Campos, interior de São Paulo. "Foram muitas brigas por causa disso. Mas eu acho que eu não denunciaria meu pai, apesar de tudo. A gente tenta salvar a pessoa até o último minuto", admite.
"Nós versus eles"
Para muitos, denunciar um familiar próximo é um grande dilema – mesmo que ele tenha contribuído para as cenas de barbárie vistas em Brasília.
"Barbárie tem uma característica bastante requintada, que é a vontade pura e simples de destruir. Não só os objetos em si, mas de aniquilar o conjunto de valores e ideias, das bases de como a vida comunitária funciona, de como a civilização se coloca. É a minha cultura, o que eu sou, a minha verdade, versus as verdades do outro, que não podem existir junto com as minhas", analisa Patricia Mattos, psiquiatra, psicoterapeuta e pesquisadora do Programa de Atendimento e Pesquisa em Violência da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
Diante das imagens de vandalismo transmitidas pela TV e que circularam nas redes sociais, há, no entanto, quem tenha optado por revelar publicamente detalhes dos participantes.
"Alguns familiares identificaram as pessoas no ato. Alguns até denunciaram pessoas próximas para nós aqui da página", respondeu à reportagem um dos administradores do perfil colaborativo Contragolpe, criado no Instagram para identificar quem usou a internet para divulgar a própria participação nos ataques.
Alguns dos nomes revelados já ajudaram a polícia a efetuar prisões, afirmam os criadores do perfil. "Tudo o que foi postado já foi encaminhado para o e-mail do Ministério da Justiça", detalha um dos administradores, que trabalha voluntariamente e de forma anônima por questão de segurança.
Mais de 30 mil denúncias já foram recebidas no canal exclusivo criado pelo Ministério da Justiça para investigar os responsáveis pela violência na capital federal, afirmou o órgão à DW.
A volta para o convívio familiar
Depois de trocar o convívio familiar pelo acampamento que pedia a intervenção militar, o pai de Ricardo* voltou a se trancar no quarto no último domingo. "Ele não foi a Brasília participar daquele quebra-quebra, mas tenho certeza de que fez doações em dinheiro para os que foram. Eu até desejei que ele fosse preso", conta o filho, por telefone, à DW.
A família não sabe como lidar com essa situação e não consegue dialogar. "Ele não fala com minha mãe, não conversa comigo e faz postagens horríveis nas redes sociais. Não sabemos o que fazer", lamenta Ricardo.
Marcos* tenta conviver com um extremista dentro de casa desde que o acampamento bolsonarista em São José dos Campos foi desmobilizado. "Meu pai ficava apitando em frente ao quartel. Ele diz que se precisar entrar em guerra, ele entra para 'defender' o Brasil do comunismo. É surreal. Não tem argumento que fique de pé numa conversa com ele, virou uma religião", afirma.
Retomar laços com os que optaram pela barbárie, aponta Mattos, é dificílimo. "A barbárie nos leva a um lugar de completo vazio do diálogo, não há construção, não há troca. As pessoas que entram nesse tipo de estado e comportamento geralmente passaram por situação de exclusão, violência, e muitas vezes abraçam isso com uma forma de resposta", comenta a psiquiatra.
No Ministério da Justiça, a expectativa é que o número de denúncias aumente e que a investigação seja rigorosa. "Os dados dos denunciantes e as informações repassadas serão mantidas sob sigilo. Todos os casos serão devidamente apurados junto às autoridades competentes e os participantes responderão criminalmente", afirmou o órgão à DW.
Provas contundentes
A apuração dos crimes passa por uma análise individualizada das provas. Não faltam vídeos e selfies dos participantes mostrando o ambiente vandalizado, incitando outros a fazerem o mesmo ou elogiando os atos.
"Usar no processo esse material publicado em redes sociais não é ilícito e me parece uma prova contundente", analisa Helena Lobo da Costa, professora de Direito Penal da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP).
É possível que, em alguns casos, seja necessário complementar o quebra-cabeça com outros itens, como testemunhas e geolocalização dos celulares dos suspeitos. "É importante ressaltar que uma pessoa que financia, que paga alguém para fazer os atos, pode ser responsabilizada. É a mesma analogia que se faz com o mandante de um homicídio", pontua Costa.
Os crimes cometidos vão de lesão corporal, como os casos de agressões contra policiais e jornalistas, a crime de tentativa de abolição violenta do Estado democrático de Direito e golpe de Estado.
"O que o Código Penal traz como componente criminoso é a tentativa de depor um governo democraticamente eleito. Eu não preciso conseguir dar o golpe para caracterizar o delito. As práticas consistiam na invasão das sedes dos três Poderes da República, me parece que existia uma intencionalidade muito clara de se atentar contra as instituições democráticas", justifica Costa.
As penas previstas vão de 4 a 12 anos de prisão.
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*Os nomes foram alterados a pedido dos entrevistados