O futuro incerto do Bolsa Família sob Bolsonaro
21 de fevereiro de 2020Há 28 anos, José Carlos Almeida vive num bairro na periferia de Aracaju, que ele, praticamente, teria ajudado a criar. Alguns chamam o local, que possui cerca de 1.100 moradores, de Japãozinho, outros de Ponta da Asa ou ainda Bairro Santo Antônio.
"Aqui vivem famílias carentes, que dependem da pesca, e muitos carroceiros, que pegam frete, para, de noite, chegar com alimentos para suas famílias. As pessoas dependem muito do Bolsa Família", conta Almeida e acrescenta que praticamente a maioria dos moradores precisa do benefício social.
"É aí que começa a circular o dinheiro no bairro", diz Almeida, que é uma espécie de prefeito informal. Ele conta, porém, que cada vez mais moradores estão sendo cortados do programa de transferência de renda. "Muitas mães não levam os filhos à escola por falta de alimentação, pois têm dias que tem merenda e outros não. Outras não levam por falta de calçado. É um bairro carente".
A perda de aulas, porém, e a falta de vacinação levam à suspensão do benefício. Assim que a situação é normalizada, as autoridades deveriam voltar a realizar o pagamento do Bolsa Família.
Vista de fora, a pequena casa de Vera Lúcia e seu marido Ivan da Silva, vizinhos de Almeida, parece um canteiro de obras. Mas, no interior, ela é confortável. "Antigamente, a gente construía muito", conta Silva. Naquela época, há cerca de dez anos, ele tinha um emprego formal, pagava sua contribuição para a aposentadoria e a vida seguia.
Porém, há quatro anos ele não contribui com o INSS. "Hoje em dia, não tem mais emprego como antes." Silva ficou sem receber auxílio-doença quando teve uma hérnia de disco há três meses. Aos 47 anos, ele às vezes vende lanches na rua. "Um dia ganha, outro não."
Eles costumavam receber o Bolsa Família para seus quatro filhos. Atualmente, apenas o mais novo tem o direito de ser incluído no programa. Teoricamente. Vera Lúcia conta que vai todos os meses a um Centro de Referência de Assistência Social (Cras), onde recebe 130 reais para ela e o filho.
Ali, ela soube que foi cortada do Bolsa Família. O motivo do corte, ela não sabe, e ninguém consegue explicar. "É para eu passar no Cras a cada final do mês para ver", diz Vera Lúcia. "Talvez alguma coisa possa mudar logo", espera Silva devido às eleições municipais deste ano. "A gente tá na mão dos homens."
"O grande problema do Bolsa Família é que todos os governos sempre usaram o programa para fins eleitorais", avalia o economista Marcelo Neri, diretor do FGV Social na Fundação Getúlio Vargas, em entrevista à DW.
A FGV estima que 900 mil pessoas foram desligadas do programa em 2019, e que haja ainda uma fila de entre 500 mil e 1 milhão de pessoas para serem atendidas. Há outras estimativas mais alarmantes, como um cálculo feito pelo jornal O Estado de S. Paulo, que diz que 3,5 milhões de pessoas, ou cerca de 1,5 milhão de famílias de baixa renda, estariam na fila.
A maioria dos casos ocorre em pequenas cidades do pobre Nordeste. Justamente na região do país onde um maior número de pessoas depende do benefício. Não é por acaso que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva ainda é visto como herói na região.
Visto no mundo como modelo no combate à pobreza, o Bolsa Família foi lançado por Lula em 2004. Entretanto, o ex-presidente passou 18 meses na prisão e enfrenta vários processos por corrupção. Mas, em Ponta da Asa, se alguém perguntar qual foi o melhor presidente da história do país, todos respondem: Lula.
Seu opositor Jair Bolsonaro ameaçou acabar com o programa que tem a "marca petista". Mas, desde que se tornou presidente em janeiro de 2019, passou a apreciá-lo. Isso porque, praticamente, um em cada quatro brasileiros recebe ajuda do Bolsa Família, ou seja, depende da boa vontade do governo. "Ser oposição e argumentar contra o programa é algo terrível", comenta Neri.
Assim, Bolsonaro estabeleceu em 2019 um 13º salário para os inscritos no programa. Ainda não se sabe se esse benefício continuará sendo pago nos próximos anos. Alguns dizem que Bolsonaro quer conquistar os eleitores de Lula. As longas filas para entrar no programa, por outro lado, podem ser uma indicação de que o presidente queira fazer mudanças, acrescentando uma "marca Bolsonaro". Quem sabe uma alteração no nome? Os sinais, segundo Neri, ainda não estão claros.
Problemas antigos
O controle sobre o programa foi reforçado no governo atual, fazendo com que centenas de milhares tivessem que deixá-lo em razão de fraudes ou inconsistências. Os problemas, porém, começaram bem antes, lembra Neri.
"É importante dizer que o programa sofre um esvaziamento já há cinco anos, desde 2015, pela via do congelamento de benefícios, sem reajuste nominal. Só havia reajuste em ano de eleição." Assim, o mais importante benefício para os pobres vivia perdendo valor. "Foi um ajuste fiscal feito em cima dos pobres, ao longo desse período de cinco anos", afirma o economista.
As consequências desse processo estão aí. "A extrema pobreza aumentou, de 2014 até 2018, segundo o último dado que temos, em 67%", afirma Neri. "Então, a notícia ruim da fila se soma a outras notícias ruins." O mais inacreditável foi que nenhum governo, desde 2014, enxergou o Bolsa Família como uma ferramenta importante para frear a desaceleração econômica.
"O Bolsa Família, um programa bom e barato, não foi utilizado durante a grande recessão, e com isso se tirou a proteção dos mais pobres e a retomada da economia também foi atrapalhada", acrescenta Neri.
Claro que há fraudes, José Carlos Almeida também sabe disso. Ele enfatiza, no entanto, que esse ato de má-fé não parte dos pobres. "O governo deve olhar com mais atenção para as pessoas carentes e ver quem tem necessidades e quem não tem."
Há casos em que políticos registraram seus irmãos, esposas e filhos no programa, apesar de todos terem emprego. Ao mesmo tempo há um grande número de pobres, "com três ou quatro filhos, sem renda e dependente do Bolsa Família. E no dia que cortam o benefício, os vizinhos têm que ajudar com leite ou com um peixe pra comer", conta Almeida.
Neri vê alguns indícios para uma possível melhora no Bolsa Família em breve. "Até agora, os pobres estavam politicamente invisíveis para o governo. Mas, estamos num ano eleitoral, e alguma coisa vai vir." Até mesmo o aumento nas listas de espera poderá ser usado nas eleições, avalia o economista.
"Primeiro, você dá uma má notícia, de que o benefício tem sido suspenso, só para depois dar uma boa notícia, de que você continua no programa. Assim, onde não tinha notícia alguma, você criou uma boa notícia", acrescenta.
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