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O legado do luto

24 de junho de 2020

Enquanto o Brasil padece em meio ao luto coletivo por milhares de mortes pela covid-19, o noticiário político não sossega. Por que, justamente quando mais precisa, o país parece não ter tempo para compaixão e pêsames?

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Ativistas da ONG Rio de Paz chamam atenção em Copacabana para mortos por covid-19, em 11 de junho
Ativistas da ONG Rio de Paz chamam atenção em Copacabana para mortos por covid-19Foto: Getty Images/AFP/C. de Souza

Caros brasileiros,

A crise do coronavírus está pior nos Estados Unidos, no Reino Unido, na Suécia ou no Brasil? Outro dia, me peguei comparando os números da covid-19. Tudo era pior do que na Alemanha, então senti certo alívio.

Mas o alívio durou pouco. Era constrangedor e até macabro. Pois, por trás das estatísticas monstruosas, há pessoas queridas que morreram antes da hora, tanto aqui na Alemanha como no Brasil e no mundo inteiro. Pessoas queridas que fazem uma falta enorme, que fazem famílias inteiras se sentirem abandonadas, que deixam filhos sem pais, pais sem filhos, viúvas e viúvos entristecidos.

Cada um que perdeu uma pessoa amada sabe a dor esmagadora que causa essa ausência. Uma dor que se estende até o fim da vida. Uma dor que vira um acompanhante fiel, que sempre reaparece nas horas mais inesperadas e que traz consigo aquele vazio deixado pela morte da pessoa amada.

No Brasil, o luto pelas mais de 50 mil vitimas do coronavírus é um sofrimento monstruoso, porém silencioso. É uma nuvem escura que se soma aos sacrifícios causados pelo distanciamento social, pelo desemprego, pela violência e pela crise política e econômica.

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É de matar: enquanto o país padece em meio ao luto coletivo, o noticiário político não sossega. É mais um escândalo aqui, mais uma demissão ali, mais infecções e mais mortes. A crise parece eterna, virou cotidiana, e todo dia se alimenta de novas notícias desagradáveis.

A vida não pode parar? Por que justamente em tempos de covid-19, quando mais precisa, o Brasil parece não ter tempo para piedade, compaixão e pêsames? Por que diante da tristeza causada por milhares de mortes ainda não foi declarado um dia ou uma semana de luto nacional?

Por trás do noticiário e da gritaria constante se esconde o medo desse luto coletivo. Pois ele, mesmo silencioso, é um poder político poderoso e imprevisível, que nenhum governo quer enfrentar. Especialmente o atual governo brasileiro, que, por isso, reprime o óbvio: não reconhece a pandemia, e, portanto, nem chega a administrá-la. É cada um por si, e Deus por todos.

O que aconteceria se admitíssemos o luto coletivo? Se passássemos horas no cemitério em vez de seguir o noticiário? Se nos encontrássemos com amigos em vez de nos envolvermos em brigas politicas nas redes sociais e de passar mensagens raivosas ou falsas para frente? E se vivêssemos como se fosse o último dia?

É bem provável que esse luto coletivo deixasse qualquer propaganda política esfarelar-se como um castelo de areia. Pois nenhuma ideologia e nenhuma campanha política com frases do tipo "Brasil acima de tudo, Deus acima de todos" tem o poder de apagar a dor e o luto por uma pessoa querida que morreu.

Quando a epidemia no país passar, o que contará não vai ser somente o número dos mortos, mas também o número de mortes evitadas. Contarão não apenas os erros que foram feitos durante o combate ao vírus, mas também a incapacidade de reconhecê-los e corrigi-los. O que conta são as decisões tomadas, e não a busca por supostos culpados.

No mundo inteiro, o luto dos familiares das vítimas pelo coronavírus merece mais respeito e reconhecimento. O drama dos enlutados que não podem participar do enterro, dos familiares que não podem se despedir dos seus queridos: tudo isso é desumano.

No Brasil, a dor dos enlutados foi esmagada pelo trator da propaganda política de um presidente que teve que ser lembrado pela Justiça sobre o uso obrigatório de máscara em espaços públicos e estabelecimentos comerciais, como medida de proteção contra o novo coronavírus. 

Junto com a epidemia, o luto reprimido e o fracasso do atual governo brasileiro no combate ao coronavírus vão virar um trauma nacional, que marcará o país por décadas. É o legado doloroso e pesado do luto. Na Alemanha aprendemos: o luto não sossega, ele clama por justiça.

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Astrid Prange de Oliveira foi para o Rio de Janeiro solteira. De lá, escreveu por oito anos para o diário taz de Berlim e outros jornais e rádios. Voltou à Alemanha com uma família carioca e, por isso, considera o Rio sua segunda casa. Hoje ela escreve sobre o Brasil e a América Latina para a Deutsche Welle. Siga a jornalista no Twitter @aposylt e no astridprange.de.