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Mundo árabe

13 de fevereiro de 2011

O escritor sírio Rafik Schami vive na Alemanha desde 1971. Em entrevista à Deutsche Welle, ele comenta a onda de protestos no mundo árabe e critica as posturas hesistantes da UE e dos EUA em relação à região.

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Para Rafik Schami, 'Ocidente' desconhece realidade dos países árabesFoto: dpa

Deutsche Welle: Em seu romance Die dunkle Seite der Liebe (O obscuro lado do amor), de teor parcialmente autobiográfico, o protagonista Farid luta contra represálias de um regime autocrático, mas sem sucesso. Por que essa consciência da necessidade de justiça, liberdade e democracia envolve as sociedades do Oriente Médio como um todo exatamente agora, de tal forma que surgem até movimentos de massa a partir daí?

Rafik Schami: Muita coisa aconteceu. Por um lado, os governantes ficaram, de fato, 30, 40 anos sem fazer nada. Isso foi se acumulando e as mentiras perderam, com o tempo, sua credibilidade perante a maioria da população. No início, apenas cidadãos críticos – intelectuais talvez, professores universitários e jornalistas – percebiam que tudo era mentira. Mas a maioria é sempre lenta. Até que entendam, é preciso de tempo.

Por outro lado, os meios de comunicação de massa sofreram uma revolução. O intercâmbio crescente de informação levou a uma concentração do ódio. A pobreza, a humilhação e a postura fraca dos soberanos frente à nação – que pensam, acima de tudo e de forma brutal, no enriquecimento próprio – contribuíram. Reunindo tudo isso, poderia-se explicar por que isso tudo está acontecendo agora e não aconteceu há 10 ou 20 anos.

Em sua obra, você denuncia o profundo marasmo cultural e as incongruências tanto em sua terra natal, a Síria, quanto em outros países árabes. A mudança política, que observamos ali no momento, é uma mudança de toda a sociedade ou apenas fogo de palha, que vai se apagar daqui a pouco?

Para não ser ingênuo, é preciso cogitar as duas possibilidades. Há sempre a possibilidade de um retrocesso. Sempre houve revoluções que se autodevoraram e se transformaram em ditaduras sangrentas. Mas os egípcios criaram uma nova alternativa. Como povo antiquíssimo, eles conduziram, pela primeira vez na história da humanidade, uma revolução pacífica, com o apoio de oito a nove milhões de cidadãos, que agora reconhecem o quanto são capazes de agir.

Esses cidadãos carregam agora as flores que brotam, como na primavera, dessas novas conclusões. Mas para que daí surjam frutos, é necessário abelhas, como sabemos em analogia ao universo das plantas. E é preciso haver ajuda de fora e situações favoráveis. Esses jovens não só deixaram para trás os intelectuais, como também ignoraram todos os partidos.

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Jovens egípcios tomaram a frente em prol de mudançasFoto: AP

Se os partidos fossem sinceros, eles precisariam admitir que estão ficando defasados. Quais serão os efeitos disso na consciência da população? Ainda não se pode dizer. Só é possível esperar que tudo não acabe em uma guerra civil. Para um povo que destituiu um ditador de forma pacífica, o conceito da "paz" é muito fértil.

Acabamos de ver que o impulso da revolução veio diretamente do povo, dos jovens. Os países ocidentais não intervieram. Como você vê o papel do Ocidente na região depois dos últimos acontecimentos?

Para ser sincero, acho o papel do Ocidente vergonhoso, principalmente essa hipocrisia dos EUA. De súbito, eles ficam preocupados com a liberdade e tal. E eles nos repreendem diante da possibilidade de que a Irmandade Muçulmana possa assumir o poder. É tudo mentira. A Irmandade Muçulmana representa uma força política de aproximadamente 10%. Ou seja, eu não iria agora questionar a democracia porque um partido mais à direita governa.

No Egito, há uma ampla gama de todas as forças políticas: religiosas, nacionalistas, liberais, socialistas, independentes, mentes absolutamente livres, talvez também anarquistas. Esses são os egípcios e o Ocidente fica olhando. Há três semanas, as pessoas lutam por meio do bem mais precioso da democracia, ou seja, através das manifestações pacíficas. E ninguém lhes ajuda. As pessoas percebem que se o Ocidente quisesse ajudar, reagiria de outra forma.

Na sua opinião, o Ocidente passou tempo demais observando e apoiando Estados árabes autocráticos?

Sim, mas acredito que nem tenha sido com más intenções. Acho que o Ocidente confia rápido demais nos governantes; confia demais no silêncio tumular, que impera nesses países; confia rápido demais que o consumo poderia mudar alguma coisa. Isso é um lado, mas o Ocidente – e me refiro aqui, em primeira linha, à Europa – esquece muito rapidamente que os países do Mediterrâneo são seus vizinhos.

Frankreich Tunesien Nicolas Sarkozy Zine El-Abidine Ben Ali
Nicolas Sarkozy e Ben Ali, em 2008: 'apoio constrangedor', diz SchamiFoto: picture-alliance/dpa

A Itália está localizada em frente à Tunísia e ao Norte da África. Aqui ainda não se tem de forma alguma a consciência, de que aquilo que acontece lá, também diz respeito ao Ocidente. Quando se vê como os governantes em todos os países europeus, não somente na Alemanha, reagem, e quando se vê como a França apoiou Ben Ali até o último minuto, percebe-se o quanto a situação é estimada de maneira errônea. A imbecilidade dessa oferta a Ben Ali foi tamanha que dava para quase ter pena de Sarkozy.

Por muito tempo acreditou-se que os povos árabes não estavam preparados para uma democracia. E que só podiam escolher entre ditadura e Estado religioso. Qual é sua opinião sobre isso?

Já ouvi esse argumento com frequência e tive também meus medos, porque faço parte de uma minoria cristã. Mas, depois de um tempo, passei a não acreditar mais nisso. É sempre possível haver retrocessos, mas eles também podem existir em uma democracia. A população foi mantida quieta, anos a fio, sob mão de ferro. Os islâmicos e a Irmandade Muçulmana eram o único grupo protegido pela Arábia Saudita: com recursos financeiros, propaganda, treinamentos.

E o Ocidente via isso com prazer. Enquanto eles podiam ser instrumentalizados como anticomunistas, eram até cortejados. Mais tarde, as forças conservadoras autocráticas pareciam ser a única alternativa. Mas tudo aquilo que estava fermentando entre a população, isso a mídia não entendeu, nem a árabe, nem a europeia.

Rafik Schami (65) é um conceituado escritor sírio, radicado na Alemanha desde 1971. Entre suas obras mais conhecidas estão O obscuro lado do amor, de 2004, e O segredo do calígrafo, lançado em 2008.

Entrevista: Nader Alsarras (sv)

Revisão: Carlos Albuquerque