Mundo árabe
13 de fevereiro de 2011Deutsche Welle: Em seu romance Die dunkle Seite der Liebe (O obscuro lado do amor), de teor parcialmente autobiográfico, o protagonista Farid luta contra represálias de um regime autocrático, mas sem sucesso. Por que essa consciência da necessidade de justiça, liberdade e democracia envolve as sociedades do Oriente Médio como um todo exatamente agora, de tal forma que surgem até movimentos de massa a partir daí?
Rafik Schami: Muita coisa aconteceu. Por um lado, os governantes ficaram, de fato, 30, 40 anos sem fazer nada. Isso foi se acumulando e as mentiras perderam, com o tempo, sua credibilidade perante a maioria da população. No início, apenas cidadãos críticos – intelectuais talvez, professores universitários e jornalistas – percebiam que tudo era mentira. Mas a maioria é sempre lenta. Até que entendam, é preciso de tempo.
Por outro lado, os meios de comunicação de massa sofreram uma revolução. O intercâmbio crescente de informação levou a uma concentração do ódio. A pobreza, a humilhação e a postura fraca dos soberanos frente à nação – que pensam, acima de tudo e de forma brutal, no enriquecimento próprio – contribuíram. Reunindo tudo isso, poderia-se explicar por que isso tudo está acontecendo agora e não aconteceu há 10 ou 20 anos.
Em sua obra, você denuncia o profundo marasmo cultural e as incongruências tanto em sua terra natal, a Síria, quanto em outros países árabes. A mudança política, que observamos ali no momento, é uma mudança de toda a sociedade ou apenas fogo de palha, que vai se apagar daqui a pouco?
Para não ser ingênuo, é preciso cogitar as duas possibilidades. Há sempre a possibilidade de um retrocesso. Sempre houve revoluções que se autodevoraram e se transformaram em ditaduras sangrentas. Mas os egípcios criaram uma nova alternativa. Como povo antiquíssimo, eles conduziram, pela primeira vez na história da humanidade, uma revolução pacífica, com o apoio de oito a nove milhões de cidadãos, que agora reconhecem o quanto são capazes de agir.
Esses cidadãos carregam agora as flores que brotam, como na primavera, dessas novas conclusões. Mas para que daí surjam frutos, é necessário abelhas, como sabemos em analogia ao universo das plantas. E é preciso haver ajuda de fora e situações favoráveis. Esses jovens não só deixaram para trás os intelectuais, como também ignoraram todos os partidos.
Se os partidos fossem sinceros, eles precisariam admitir que estão ficando defasados. Quais serão os efeitos disso na consciência da população? Ainda não se pode dizer. Só é possível esperar que tudo não acabe em uma guerra civil. Para um povo que destituiu um ditador de forma pacífica, o conceito da "paz" é muito fértil.
Acabamos de ver que o impulso da revolução veio diretamente do povo, dos jovens. Os países ocidentais não intervieram. Como você vê o papel do Ocidente na região depois dos últimos acontecimentos?
Para ser sincero, acho o papel do Ocidente vergonhoso, principalmente essa hipocrisia dos EUA. De súbito, eles ficam preocupados com a liberdade e tal. E eles nos repreendem diante da possibilidade de que a Irmandade Muçulmana possa assumir o poder. É tudo mentira. A Irmandade Muçulmana representa uma força política de aproximadamente 10%. Ou seja, eu não iria agora questionar a democracia porque um partido mais à direita governa.
No Egito, há uma ampla gama de todas as forças políticas: religiosas, nacionalistas, liberais, socialistas, independentes, mentes absolutamente livres, talvez também anarquistas. Esses são os egípcios e o Ocidente fica olhando. Há três semanas, as pessoas lutam por meio do bem mais precioso da democracia, ou seja, através das manifestações pacíficas. E ninguém lhes ajuda. As pessoas percebem que se o Ocidente quisesse ajudar, reagiria de outra forma.
Na sua opinião, o Ocidente passou tempo demais observando e apoiando Estados árabes autocráticos?
Sim, mas acredito que nem tenha sido com más intenções. Acho que o Ocidente confia rápido demais nos governantes; confia demais no silêncio tumular, que impera nesses países; confia rápido demais que o consumo poderia mudar alguma coisa. Isso é um lado, mas o Ocidente – e me refiro aqui, em primeira linha, à Europa – esquece muito rapidamente que os países do Mediterrâneo são seus vizinhos.
A Itália está localizada em frente à Tunísia e ao Norte da África. Aqui ainda não se tem de forma alguma a consciência, de que aquilo que acontece lá, também diz respeito ao Ocidente. Quando se vê como os governantes em todos os países europeus, não somente na Alemanha, reagem, e quando se vê como a França apoiou Ben Ali até o último minuto, percebe-se o quanto a situação é estimada de maneira errônea. A imbecilidade dessa oferta a Ben Ali foi tamanha que dava para quase ter pena de Sarkozy.
Por muito tempo acreditou-se que os povos árabes não estavam preparados para uma democracia. E que só podiam escolher entre ditadura e Estado religioso. Qual é sua opinião sobre isso?
Já ouvi esse argumento com frequência e tive também meus medos, porque faço parte de uma minoria cristã. Mas, depois de um tempo, passei a não acreditar mais nisso. É sempre possível haver retrocessos, mas eles também podem existir em uma democracia. A população foi mantida quieta, anos a fio, sob mão de ferro. Os islâmicos e a Irmandade Muçulmana eram o único grupo protegido pela Arábia Saudita: com recursos financeiros, propaganda, treinamentos.
E o Ocidente via isso com prazer. Enquanto eles podiam ser instrumentalizados como anticomunistas, eram até cortejados. Mais tarde, as forças conservadoras autocráticas pareciam ser a única alternativa. Mas tudo aquilo que estava fermentando entre a população, isso a mídia não entendeu, nem a árabe, nem a europeia.
Rafik Schami (65) é um conceituado escritor sírio, radicado na Alemanha desde 1971. Entre suas obras mais conhecidas estão O obscuro lado do amor, de 2004, e O segredo do calígrafo, lançado em 2008.
Entrevista: Nader Alsarras (sv)
Revisão: Carlos Albuquerque