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O que esperar da bancada LGBTQ no Congresso

Rayanne Azevedo de Brasília
1 de fevereiro de 2023

Em ambiente de maioria conservadora, deputadas não querem se limitar a questões de gênero, sexualidade e minorias, mas focar em pautas sociais, forjando alianças com potenciais aliados.

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Deputadas federais e estaduais LGBTQ durante encontro promovido pela ONG VoteLGBT em Brasília, em janeiro de 2023
Deputadas federais e estaduais LGBTQ durante encontro promovido pela ONG VoteLGBT em Brasília, em janeiro de 2023Foto: Gui Mohallem/VoteLGBT

Esta quarta-feira (01/02) inaugura um marco na história da política brasileira, com a chegada à Câmara dos Deputados de quatro mulheres declaradamente LGBTQ eleitas pelo voto popular.

Embora o número represente um avanço tímido diante dos 513 assentos da Casa, o recorde é celebrado por ativistas da causa por representar a inclusão em espaços políticos de segmentos da sociedade cujos direitos civis, políticos e sociais, contrariando a Constituição, têm sido historicamente negados no Brasil.

Ao lado do senador Fabiano Contarato (PT-ES), as deputadas Daiana Santos (PCdoB-RS), Dandara Tonantzin (PT-MG), Duda Salabert (PDT-MG) e Erika Hilton (Psol-SP) formarão a primeira bancada LGBTQ no Congresso. Será também a primeira vez que pessoas trans estarão representadas no Parlamento Federal.

A atuação da bancada poderá ser turbinada com o apoio de potenciais parlamentares aliados, como políticos de perfis antirracistas – três das quatro deputadas são negras –, feministas, ambientalistas, além de indígenas e de defensores de direitos humanos – esses, contudo, também são minoria em um Congresso predominantemente conservador. Após uma nova onda de direita nas eleições de 2022, analistas preveem poucos avanços nas chamadas pautas identitárias e de direitos humanos no Legislativo.

Expectativas devem ser calibradas

Se o retorno de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) à Presidência da República deu ao movimento LGBTQ algum alívio – após o governo Jair Bolsonaro reconfigurar completamente as políticas para essa parcela da população – parlamentares e especialistas ouvidos pela DW afirmam que no Congresso as expectativas quanto ao avanço de pautas e políticas específicas para esse segmento terão que ser calibradas.

Cofundadora da Tenda das Candidatas, projeto de formação política para mulheres, Hannah Maruci diz que, se por um lado a aliança entre fundamentalistas religiosos e conservadores no Congresso deve impor dificuldades às deputadas recém-chegadas, por outro lado, a presença delas será importante para barrar retrocessos no Legislativo e demarcar posição.

"Para aprovar avanço [na pauta LGBTQ] precisa de maioria, e a bancada está longe disso", afirma Maruci, avaliando, contudo, que se elas forem bem-sucedidas na articulação com outros parlamentares, o saldo pode ser positivo. "Essa população nunca esteve lá, e sempre foram feitas leis que excluem essas pessoas. A presença delas lá vai trazer isso à tona. Esse apagamento que existe pela ausência desses corpos no Parlamento vai deixar de existir, porque não vai passar nada sem que haja posicionamento, reivindicações."

Se em termos de leis aprovadas a expectativa é modesta, a pesquisadora Evorah Cardoso, da ONG VoteLGBT, que atua para aumentar a representatividade de LGBTQs na política, elenca uma série de outros instrumentos pelos quais as parlamentares podem gerar impacto no Congresso e provocar debates relevantes.

"Elas têm emendas parlamentares, podem convocar audiências públicas, formar uma frente parlamentar LGBT nos casos em que elas não estão isoladas nas casas legislativas, podem aproveitar o microfone no plenário para se opor a determinadas coisas, marcar posição, apresentar informações e dados", afirma.

Estratégia é focar nas pautas sociais

A expectativa das deputadas é avançar em pautas de justiça social, como combate à miséria e à fome; acesso à educação, saúde e moradia; bem como questões ambientais e de mobilidade urbana. Nesses temas, elas avaliam ter boas chances de atingir consensos não só com a ala progressista da Câmara, mas também com colegas refratários à pauta LGBTQ.

Elas veem como positivas sinalizações do governo federal, como a criação das pastas da Igualdade Racial e dos Povos Indígenas e a perspectiva de reabertura de canais de diálogo com o Executivo por meio de conselhos participativos nos ministérios.

Além de aproveitar sinergias com outros parlamentares, a deputada Daiana Santos explica que essa é também uma maneira de "desconstruir o imaginário" que limitaria pessoas LGBTQ a questões de gênero e sexualidade. "Nós não somos unicamente defensores da sigla LGBTQIA+. Temos outras ações. Somos professores, advogados, cientistas, médicos, analistas de saúde pública, educadores", argumenta.

Deputada estadual e ex-colega de Erika Hilton na Câmara de Vereadores de São Paulo, Carolina Iara (Psol-SP) faz coro com Daiana. "A gente é eleita para o todo", frisa. "A gente quer falar de orçamento, quer discutir plano diretor, ocupação de terra, moradia. Ser LGBTQIA+ não se resume só a sexualidade, gênero e defesa de minorias. É, de fato, colocar a pauta interseccional na prática."

Segundo Maruci, é comum que grupos politicamente minorizados tenham, à revelia, sua atuação política reduzida a somente uma dimensão da sua identidade. "Como se estivessem ali só para isso, como se a existência delas fosse apenas ligada a essa identidade”, critica. "Na verdade, a identidade embasa a experiência delas para olhar para todas as coisas."

Maruci argumenta que é daí que advém a luta por mais representatividade na política. "Se a gente tem esse olhar sobre o orçamento e as políticas públicas, isso muda como as coisas vão sendo construídas" argumenta.

Daiana cita como exemplo a necessidade de debater protocolos de atendimento do SUS para mulheres lésbicas, cujas especificidades de saúde sexual e reprodutivas, segundo ativistas, devem ser levadas em consideração pelos profissionais de saúde. "É diferente de fazer [política pública] ‘para' [um grupo social]; é fazer ‘com' [o olhar dessas pessoas]. São questões básicas, que parecem pequenas, mas que têm grande impacto na sociedade."

De olho na extrema direita

Embora a estratégia de focar no social siga convicções políticas, a expectativa é que ela funcione também como uma espécie de antídoto contra ataques da extrema direita, que fez da pauta de costumes seu estandarte político.

"[A ideia é] Não dar munição para que a extrema direita seja convocada", afirma Gui Mohallem, diretor da VoteLGBT. "A gente é o bode expiatório deles. Na convocação para os atos golpistas, a gente via muito a família do ex-presidente [Jair Bolsonaro] falando coisas do tipo: ‘Se você não quer que seu filho use batom, participe'. Eles usam pautas transfóbicas, apelam para uma transfobia que, por ignorância, está permeada na sociedade para concentrar um ressentimento dessa direita branca e reacionária."

A deputada Erika Hilton segue na mesma toada. Segundo ela, o governo Lula – eleito por uma margem apertada com 50,9% dos votos e chacoalhado pelo assalto à sede dos Três Poderes uma semana após a posse – também terá que ser cauteloso com esses temas, se quiser evitar um retorno da extrema direita ao comando do país em 2026.

"A política é o jogo do toma lá, dá cá. Nós sabemos que o governo será revolucionário em muitos campos, mas não poderá ser em todos, porque o Congresso também pode ser um calcanhar de Aquiles. Eu acredito que em algum momento esses pesos e medidas serão colocados na mesa, e aí a gente vai ter que entender onde recuar para avançar, onde avançar para recuar."

Carolina concorda e lembra que, em muitos casos, é o Judiciário quem tem garantido direitos a pessoas LGBTQ. Ela cita como exemplo uma jurisprudência que criminalizou a LGBTQfobia ao equipará-la ao crime de racismo. "Seria fundamental ter uma lei específica para a LGBTQfobia, e não o arranjo com a lei de racismo. Mas, nesse momento histórico, com essa conjuntura, é melhor não mexer."

Ela, contudo, se mostra otimista ao lembrar a experiência prévia como vereadora. "Acho que vai dar para propor algumas coisas. Em São Paulo [capital] conseguimos aprovar praticamente por unanimidade um auxílio aluguel para vítimas de violência – e conseguimos botar no texto que era para mulheres em sua diversidade. Ou seja: um jeito de colocar mulheres travestis, LGBTs, sem usar essas palavras."

Bancada LGBTQ como ganho político

Cientista política, Maruci pondera que a conquista que a eleição de uma bancada LGBTQ representa não deve ser analisada apenas em termos de aprovação de leis. "A própria chegada dessas mulheres já vai gerar um avanço político inevitável, porque elas terão visibilidade e respaldo institucional." Representa também uma quebra de estereótipos que alarga os horizontes de outras pessoas LGBTQs e as empodera, ao mesmo tempo que enriquece o debate democrático ao torná-lo mais plural e inclusivo – e, portanto, mais legítimo, já que abarca um número maior de perspectivas da sociedade que se propõe a representar.

A análise é compartilhada por Linda Brasil (Psol), primeira deputada estadual trans eleita em Sergipe – e com votação expressiva; foi a sétima colocada dentre os 24 eleitos. Apesar das diferenças partidárias, avalia, as deputadas federais terão umas às outras e esse apoio mútuo fará toda a diferença. "Quando somos uma ou duas, a gente muitas vezes se sente acuada. Agora já tem alguma representatividade."

"A presença delas vai provocar", prevê Linda, remetendo à própria experiência prévia na política como vereadora em Aracaju e única trans. Ao se despedir do mandato, disse ter ouvido dos demais vereadores o quanto a presença dela "provocou reflexão e a desconstrução de estigmas e estereótipos que a Casa tinha em relação aos nossos corpos".

Violência e isolamento são desafios aos mandatos LGBTQs

Se no Congresso a bancada LGBTQ terá dificuldades, nos parlamentos estaduais a situação é ainda mais delicada, já que, segundo Cardoso, a maioria das 14 deputadas estaduais está isolada. "A relação com o próprio partido e com os parlamentares pode ser mais difícil", exemplifica.

Mohallem, do VoteLGBT, ressalta que além de estarem expostas a retóricas racistas ou LGBTfóbicas, é preciso lidar com ameaças frequentes – a mais recente, endereçada à deputada estadual Thainara Faria (PT-SP), chegou no último dia 21 de janeiro, durante um encontro organizado pela ONG em Brasília ao qual haviam comparecido 15 deputadas e deputados, três representantes do governo federal e ativistas de entidades da sociedade civil.

O evento, que debateu a ampliação da representação de LGBTQs na política, só não foi interrompido porque recebeu escolta da Polícia Federal.

Antes das ameaças, Carolina chegou a citar Marielle Franco durante sua fala no encontro. Negra e bissexual, a vereadora foi executada no Rio de Janeiro em 2018 em circunstâncias até hoje não esclarecidas. "Para além de eleger, é preciso proteger; pensar em políticas para que essas pessoas estejam preparadas e saibam que jogo vão jogar, que tornem-se dirigentes políticos e sejam preparadas para tomar decisões dentro dos partidos", declarou à plateia.

Maruci, da Tenda das Candidatas, destaca que, além da resposta institucional por meios das autoridades, a violência política também se combate com representatividade. "A gente está indo contra um discurso muito forte, arraigado, que não vai ser desconstruído da noite para o dia. Quanto mais visibilidade e eleitas, maior é a resistência e mais poderoso fica esse combate."