O que está em jogo no caso da capitã que ajudou refugiados
2 de julho de 2019A capitã alemã Carola Rackete, do navio de resgate Sea-Watch 3, é celebrada como heroína por diversos políticos e personalidades de seu país. Na Itália, por outro lado, foi tratada como criminosa por autoridades. Rackete foi presa por desafiar uma proibição de Roma e atracar sua embarcação no porto de Lampedusa para salvar migrantes resgatados no Mar Mediterrâneo. Ela foi libertada nesta terça-feira (02/07) após decisão da Justiça italiana.
Que leis italianas foram violadas pelo Sea-Watch 3?
Rackete foi presa no sábado pelas autoridades italianas sob acusação de "resistir a um navio de guerra", depois que sua embarcação danificou um barco a motor da polícia alfandegária e fronteiriça no porto mediterrâneo de Lampedusa. Embora não tenha havido feridos, o ministro italiano do Interior, Matteo Salvini, descreveu o incidente como "um ato de guerra".
Nesta terça-feira, uma juíza italiana negou aceitar o indiciamento contra Rackete pelo crime, que podia lhe render até dez anos de prisão. Contudo, ela segue sujeita a uma multa de até 50 mil euros (cerca de 217 mil reais), estabelecida recentemente pelas autoridades italianas para aqueles que levam pessoas resgatadas para os portos do país sem permissão. Os promotores sicilianos também abriram uma investigação contra Rackete por apoiar o tráfico humano.
Que leis marítimas internacionais a Sea-Watch disse estar seguindo?
A Sea-Watch, iniciativa alemã que se destina ao resgate marítimo de migrantes nas fronteiras da Europa, diz que Rackete, uma alemã de 31 anos, estava seguindo a lei marítima internacional ao resgatar refugiados e levá-los a um porto seguro.
"Certamente há diferentes áreas de regulamentação que não se harmonizam", explica Nele Matz-Lück, professora de Direito Internacional e Marítimo da Universidade de Kiel. "Por um lado, há o nível da lei marítima internacional, que diz que os capitães devem resgatar pessoas e levá-las a um lugar seguro, mas não há obrigação de os Estados costeiros serem o lugar seguro".
Por esse motivo, Salvini e a guarda costeira italiana também estavam no seu direito de recusar a entrada do navio e de usar a força para tentar bloquear o porto. No entanto, Matz-Lück afirma que "definitivamente não é verdade" que isso constitui um "ato de guerra", como alegava Salvini.
Em comunicado divulgado no domingo, a Sea-Watch disse: "A capitã Rackete realizou todas as manobras muito devagar, de maneira não conflituosa, a fim de dar ao barco [da guarda costeira] tempo suficiente para sair de sua posição entre o Sea-Watch 3 e o píer. [...] Os dois navios apenas se tocaram um pouco."
Há também espaço para interpretações sobre as condições a bordo. Embora os navios sejam normalmente obrigados a seguir as instruções de um porto, se o capitão considerar a situação a bordo como uma emergência (se a comida estiver acabando e as pessoas ficarem doentes, por exemplo), ele tem o direito de forçar a entrada no porto.
"Naturalmente a real gravidade de uma situação é, até certo ponto, uma questão de interpretação", afirma Constantin Hruschka, pesquisador do Instituto Max Planck de Direito e Política Social em Munique.
Rackete pode ser processada pelas leis de tráfico humano?
Sob o direito internacional, o tráfico "só é sujeito a processo quando há lucro", diz Hruschka. Mas essa disposição não existe na lei italiana.
"Esta é a grande questão agora: um Estado pode decidir que qualquer um que ajude alguém pode ser processado?", afirma o pesquisador. "As leis da União Europeia indicam apenas que a imigração ilegal deve ser combatida. E Salvini diz que é muito mais eficiente quando todos podem ser punidos, em vez de fazer exceções. Portanto, há certo espaço interpretativo, e é por isso que o caso está causando tanto burburinho."
Por que os migrantes não foram levados de volta à Líbia?
Políticos da legenda populista de direita Alternativa para a Alemanha (AfD) estão entre os críticos que sugeriram que Rackete poderia ter levado os migrantes de volta à Líbia, de onde o barco avariado dos refugiados havia partido (Lampedusa está mais perto do Norte da África do que da Itália).
"Por um lado, não há obrigação de levar alguém para o porto mais próximo", afirma Matz-Lück. Essa regra garante que os navios comerciais, por exemplo, possam continuar na rota pretendida, caso resgatem pessoas de navios danificados.
"Mas tem que ser um lugar seguro", acrescenta Matz-Lück. "E um lugar seguro não significa apenas terra seca, significa um lugar onde as pessoas podem ter suas necessidades básicas satisfeitas. Então a Líbia claramente não se qualificaria para tal."
Por que os migrantes não foram levados para outro porto europeu?
Durante o impasse de 16 dias entre o Sea-Watch 3 e as autoridades italianas, muitos argumentaram que Rackete deveria ter levado o navio para outro país europeu. Afinal, o ministro do Exterior da Itália, Enzo Moavero Milanesi, havia declarado na sexta-feira que cinco países da UE se ofereceram para receber os 40 migrantes a bordo: França, Alemanha, Finlândia, Luxemburgo e Portugal.
Mas, de acordo com Matz-Lück, em tais circunstâncias a lei marítima oferece ao capitão muito espaço interpretativo. "Se ela disser que a situação a bordo não combina com essa decisão, ou o suprimento de água, ou o suprimento de combustível não se adequa a isso, então cabe ao capitão decidir se o navio parte ou não", diz a professora. "Não há regras legais claras sobre o que deve ser feito em tais situações."
Por que migrantes resgatados não podem ser distribuídos pela Europa?
A União Europeia não tem um mecanismo para que os refugiados resgatados no Mediterrâneo sejam distribuídos de maneira justa e segura em todo o bloco, o que indica que, de fato, ainda deve haver mais impasses e crises como a que envolve o Sea-Watch 3.
"Se houvesse um regulamento legal da UE acordado por todos, eles poderiam ser distribuídos", diz Hruschka. "Mas esse sempre foi o problema, sempre houve países que concordaram voluntariamente em aceitar algumas pessoas. Mas não há um mecanismo."
Em outras palavras, para cada navio com migrantes que chega à Europa, sempre se pergunta: quem os aceitará? Itália e Malta disseram que não deixariam ninguém desembarcar a menos que outros países concordassem em aceitá-los.
"Por que esses países dizem isso? Porque se os migrantes aportarem em suas costas, fizerem um pedido de refúgio e tentarem obter proteção, então o Estado seria responsável", aponta Hruschka. Isso é estipulado pela Convenção de Dublin.
Se outros países da UE disseram que aceitariam os migrantes, por que a Itália não abriu seu porto?
Isso se deve à postura linha-dura adotada pelo governo italiano. "A ideia de Salvini é fechar totalmente os portos. Ele vai um passo além; dizendo sempre que isso é tráfico e, portanto, potencialmente criminoso e não pode ser permitido", diz Hruschka. "A agenda política dos diversos países é muito distinta".
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