O que mantém um eleitor fiel ao PT?
23 de outubro de 2018Não fosse o português nativo e o apreço pelas novelas da Globo, Telma, Maria e Mariana* poderiam ser descritas como mulheres de três continentes distintos, tamanhas as diferenças que separam suas vidas. Telma Alves Inês tem 50 anos e trabalha como empregada doméstica em São Paulo para ajudar nas contas da casa que divide com o marido e os dois filhos. Maria da Conceição Carvalho já contabiliza 39 aniversários, têm quatro filhos e vive numa comunidade isolada na cidade de Piripiri, no interior do Piauí. Mariana Silva* é uma roteirista com pós-graduação em filosofia, não tem filhos e participa de um coletivo de artistas de rua. Apesar de viverem em mundos que parecem tão distantes entre si, as histórias dessas três mulheres se cruzam a cada quatro anos.
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As três fazem parte de um contingente cada vez menor de brasileiros que têm votado no Partido dos Trabalhadores nas eleições presidenciais de maneira fiel e contínua. Nas últimas cinco eleições presidenciais, cravaram 13 na urna eletrônica e deram seus votos ao PT sem se importar com as denúncias de corrupção e as decisões da Justiça que levaram boa parte dos principais dirigentes do partido para a prisão, incluindo seu líder, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Depois de elegerem Lula e Dilma por duas vezes, no próximo domingo vão às urnas, no entanto, sem a mesma esperança de anos anteriores, a de tentar levar o candidato do PT, Fernando Haddad, ao Planalto. E, dizem, independentemente do resultado, seguirão apoiando Lula e o PT.
Telma, Maria e Mariana* são o que se convencionou chamar de "o eleitor petista", uma espécie de figura abstrata que engloba tanto estereótipos quanto contradições para aqueles que tentam definir quem são os mais de 25% de brasileiros que seguem escolhendo o Partido dos Trabalhadores como sua sigla partidária. As três, separadas e juntas, ajudam a entender por que, mesmo diante do massacre vivido pelo partido que comandou o país por mais tempo no seu mais recente período democrático, tantos brasileiros continuam acreditando que a saída para o Brasil está, direta ou indiretamente, nas mãos de Lula.
"Não há um eleitor petista, um segmento da sociedade ou uma característica regional que explique quem é esse eleitor", diz o cientista político Cláudio Couto, professor da Fundação Getúlio Vargas. "Ele é multifacetado e está distribuído por diferentes setores sociais, tanto entre os mais pobres e menos escolarizados como entre aqueles que têm alto poder aquisitivo e alta escolaridade, passando por segmentos da classe média baixa ligadas a setores com forte representação sindical", diz ele. "O que mudou ao longo dos anos foi a composição majoritária desses segmentos. Hoje, claramente, o PT está mais conectado com as classes mais baixas, mais rurais, que foram fortemente influenciadas pelos programas de transferência de renda."
A análise de Couto pode ser comprovada em números, tanto pelas pesquisas eleitorais quanto pelos mapas de votação do primeiro turno das eleições. A pesquisa Datafolha divulgada no dia 18 de outubro confirma uma tendência apontada por todos os levantamentos ao longo dessa eleição: Haddad só consegue ter a maioria da preferência entre eleitores com ensino básico, que recebem até dois salários mínimo ou que moram na Região Nordeste. Em qualquer outro cenário ou região do país ele é derrotado por Jair Bolsonaro.
Em Piripiri, a cidade de Maria da Conceição, Haddad venceu com quase 60% dos votos. Ali, nessa cidade do estado que mais deu votos proporcionais ao PT no primeiro turno, Bolsonaro não conquistou nem 20% dos votos, em votação muito semelhante com o restante do Piauí. "Lula mudou a vida da gente aqui, depois que ele chegou acabou a fome, acabou a miséria", conta Maria, explicando a razão de tamanha fidelidade. "Aqui não tem emprego, não tem nada, a terra dá pouco, o Bolsa Família transformou tanto a vida do pobre como a do rico aqui nesse Nordeste", diz ela, que acredita que Lula foi vítima de uma injustiça.
Nem sempre foi assim. Até 2002, ano da primeira eleição de Lula, Piripiri e o Piauí votaram de forma maciça em candidatos identificados com modelos liberais e de centro-direita. Em 1989, Fernando Collor de Mello derrotou Lula com mais de 60% dos votos no estado. Em 1994 e 1998 foi a vez de o tucano Fernando Henrique Cardoso vencer o PT neste que hoje é o estado mais lulista do Brasil. Naqueles anos, o Partido dos Trabalhadores tinha sua base eleitoral em áreas urbanas e industrializadas, como o ABC Paulista e a periferia de São Paulo, o ambiente onde nasceu.
Telma Alves Inês se lembra desses tempos. Seu marido, um metalúrgico como Lula, conheceu o PT no sindicato e Telma, na igreja. Logo engajaram-se às ideias de igualdade social pregadas pelo partido. Desde então têm votado no PT com uma fidelidade inabalável. "O PT olha para os mais pobres, para os mais necessitados. O Haddad mesmo, quando foi prefeito aqui de São Paulo, fez várias obras na região, melhorou nossa vida", diz ela. Telma vive no Jardim Ângela, na zona sul de São Paulo, a zona eleitoral da capital paulista que deu mais votos proporcionais ao PT nessa eleição presidencial de primeiro turno. Ela, como poucas pessoas aqui, é beneficiária do Bolsa Família.
A hegemonia petista nessa região popular e operária de São Paulo deixou de ser regra. O Jardim Ângela foi um dos poucos bairros da Grande São Paulo que deu vitória ao PT nestas eleições. Na Capital Paulista, nas 58 zonas eleitorais que reúnem quase 9 milhões de eleitores, em apenas 4 Fernando Haddad teve a maior parte dos votos.
"O sentimento é de frustração. Quando vemos um candidato que defende a violência e a ditadura conquistar tantos votos na nossa região, precisamos perguntar onde erramos", diz o padre Jaime Crowe, um religioso católico irlandês que está no Brasil há quase 50 anos e tem uma relação íntima com o PT. Padre Jaime, como é conhecido, é o pároco da Igreja dos Santos Mártires, no Jardim Ângela. Radicado no bairro há 32 anos, ele é um dos principais ativistas na luta contra a violência e a desigualdade social nesta região. Não à toa, uma grande imagem do revolucionário argentino Che Guevara divide uma parede na Casa Paroquial da Igreja com outras figuras religiosas.
Assim como em outras regiões do país, o discurso de que o PT ameaça implantar uma "ditadura comunista" libertina no Brasil também faz eco junto ao rebanho de Padre Jaime e em toda a periferia paulista. "Dizem que Bolsonaro é nazista, mas se esquecem que o nazismo é de esquerda. Haddad quer fazer como Lula e liberar o aborto no Brasil", conta Anderson Elias, de 24 anos, que toca violão no coral da igreja de Padre Jaime.
É o que o cientista político e professor do Insper, Carlos Melo, chama de fetichização do PT. "Quem ouve esse discurso se imaginará no contexto da Guerra Fria; acreditando que há em Moscou um Josef Stálin, que um muro em breve será erguido na Alemanha, que Fidel Castro desencaminha os jovens da América Latina, que Luiz Carlos Prestes e Leonel Brizola estão prontos para o assalto final ao poder, no Brasil. Se muito disto já era delírio no passado, o que dizer de hoje?", escreveu ele em um recente artigo a respeito do candidato ao governo de São Paulo João Dória, que, apesar de ser do PSDB, adotou a cartilha de Jair Bolsonaro para tentar conquistar seus eleitores.
A roteirista Mariana Silva* vive distante desse mundo. Moradora dos Jardins, uma área nobre de São Paulo, vizinha à avenida Paulista, ela não tem amigos que votam em Jair Bolsonaro. Nem parentes. Só vizinhos. "Aqui no prédio têm uns loucos, fazem algum barulho, mas ainda não chegam a incomodar", conta ela. Estudante de mestrado na mais elitista das universidades públicas brasileiras, a USP, ela vota em Lula e no PT desde que se lembra. "Lula transformou o Brasil, tirou milhões de pessoas da miséria, acabou com a fome no Nordeste", conta ela, que prefere passar suas férias visitando festivais de música na Europa do que a conhecer o que ela chama de Brasil profundo.
Mariana* faz parte de uma classe média alta, escolarizada, que há pelo menos duas gerações têm dado apoio ao PT. Mas, assim como na periferia de São Paulo, eleitores como Mariana* estão abandonando o partido após tantos escândalos de corrupção. "Muitos dos meus amigos estão mais próximos do PSOL, acham que Guilherme Boulos (candidato derrotado à Presidência pelo PSOL) é o caminho para a esquerda no Brasil". Ela, por enquanto, se mantém fiel. Não se sabe até quando.
*nome alterado a pedido da entrevistada
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