Na Alemanha, a antiga "terra dos poetas e pensadores", ideias complexas parecem cada vez mais se transformar em artigo indesejado. É a impressão que se tem quando se observa as discussões econômicas dos últimos anos.
Do ponto de vista alemão, a crise da dívida, que quase arruinou a zona do euro, foi um problema dos "Estados da crise", muitas vezes também denominados "crianças-problemas". Gregos, portugueses, espanhóis, italianos – todos "viveram além das próprias possibilidades" e "se endividaram até as orelhas" em vez de simplesmente poupar e trabalhar duro.
Até hoje essa é a explicação de praxe na Alemanha. Era a que se escutava tanto nas mesas dos bares quanto na mídia e na política de Berlim, onde o então ministro das Finanças, Wolfgang Schäuble, evocou como modelo a dona de casa suábia – um povo alemão considerado especialmente avaro. A maioria dos economistas do país também argumentava assim, o que demonstra a carência intelectual que impera nessa disciplina no país.
Ainda hoje os alemães acham que têm razão, e como prova apontam a boa conjuntura do país. O desemprego bate recorde negativo, a economia cresce, carros e máquinas alemães vendem otimamente em todo o mundo. Em outras palavras: nós fizemos tudo certo.
Maurice Obstfeld, o economista-chefe do Fundo Monetário Internacional (FMI), é dos que há anos rebatem essa teoria. Como um professor paciente falando a uma criança com dificuldades de aprendizado, ele empreendeu uma nova tentativa de fazer seu argumento ser ouvido num artigo para o jornal Die Welt, afirmando que, em comparação com suas altas exportações, os alemães não compram o suficiente no exterior.
O resultado é um superávit de exportações de 122 bilhões de euros, apenas no primeiro semestre de 2018. Muitos alemães veem essa cifra até mesmo com orgulho: ganhar muito, gastar pouco – a dona de casa suábia não poderia estar mais feliz.
Para Obstfeld, em contrapartida, altos excedentes da balança comercial são um perigo para o livre-comércio e a estabilidade financeira global. Exportar permanentemente bem mais do que se importa não significa nada além de fazer do endividamento dos outros o próprio modelo comercial.
Segundo estimativas do FMI, em 2017 a Alemanha foi responsável por cerca de 20% dos superávits em balanças comerciais em todo o mundo; o segundo lugar coube à China, com 11%. Obstfeld não está só em suas críticas. O presidente americano, Donald Trump, condena os excedentes alemães; a Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE) os critica.
A Comissão Europeia até mesmo estabeleceu um teto máximo: superávits acima de 6% do PIB são classificados como "perigosos para a estabilidade". Há anos a Alemanha está muito acima desse limite. Teoricamente a Comissão Europeia poderia iniciar uma ação penal, mas se limita a advertências amigáveis.
O que é que se pode fazer, se os nossos produtos são tão apreciados? – é o argumento preferido pelos alemães. Só que isso ignora inteiramente o cerne da questão. Pois o que se critica não é a força das exportações da Alemanha, mas sim a fraqueza de suas importações. E essa tem causas que são de responsabilidade alemã.
Cálculos da Fundação Hans Böckler, ligada ao setor sindical, mostram que o consumo interno estagnou por quase 20 anos, antes de crescer um pouco. Com a curva salarial foi semelhante, sobretudo nos setores médio e baixo. E as estatísticas do mercado de trabalho, à primeira vista excelentes, se devem também à forte expansão do setor de baixos salários e das relações trabalhistas precárias.
Acrescentem-se os investimentos insuficientes do setor público. Estradas e pontes estão em mau estado, trens pontuais são uma raridade, a virada energética não avança, a digitalização vai mancando. Ao mesmo tempo, municipalidades de cofres vazios têm que poupar onde é possível: em piscinas públicas, centros de cultura, lares e creches. Como já disse o presidente da França, Emmanuel Macron: as "contas zeradas", de que os ministros alemães das Finanças tanto falam, têm caráter de fetiche na Alemanha.
No momento, o governo federal procura não descartar as críticas aos superávits com a mesma brusquidão de antes, e indica os recentes aumentos de salários e investimentos. Mas poderia fazer mais. Por exemplo: os aluguéis nos centros urbanos se tornam inacessíveis para muitos, enquanto as moradias sociais são hoje apenas a metade do que havia em 1990.
Infraestrutura decadente, aluguéis altos, falta de vagas nas creches: tudo isso fomenta insatisfação, a qual também é politicamente instrumentalizada. E aí se diz que estamos esbanjando dinheiro com "eles" (antes, os gregos, hoje também os refugiados), enquanto para os "cidadãos normais" não há dinheiro.
Parece ser simplesmente complexa demais a ideia de que a fixação alemã em poupar e a simultânea moderação salarial e de investimentos tenham colaborado para deflagrar a crise, como sugerem Obstfeld e outros. Talvez seja preciso Trump abordar o tema novamente num tuíte.
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