Turquia na UE
28 de julho de 2008Os chefes de governo e de Estado da União Européia (UE) deram sinal verde em outubro de 2004 e, em 3 de outubro de 2005, a UE e a Turquia passaram a negociar o ingresso do país no bloco. No entanto, apesar de haver sido uma decisão consensual, o tema ainda gera debates controversos e emocionais. Mas, na verdade, o que está em jogo neste conflito não é a Turquia. Pois sua entrada questiona o que exatamente é a Europa e o que ela pretende ser.
É possível traçar um paralelo com o debate sobre a assim chamada cultura dominante (leitkultur) na Alemanha. Pois também aqui debatemos não apenas a integração de imigrantes, mas nos certificamos de forma mais abrangente sobre o futuro e a identidade de nossa sociedade. Sendo assim, o debate sobre as fonteiras e a ampliação da UE é também uma espécie de confirmação. Afinal, o que é a Europa?
Os países-membros da União Européia são interdependentes do ponto de vista econômico e seria errado menosprezar a integração econômica em busca de uma definição comum do que é a Europa, como se ela tivesse um significado menor que fronteiras supostamente mais objetivas e semelhanças culturais.
A importância da integração política, por sua vez, vem à tona diante dos desafios que um país não consegue enfrentar sozinho. Seja no tocante às conseqüências das mudanças demográficas, às mudanças climáticas, ao combate ao terrorismo ou à luta global contra a pobreza e a fome – a União Européia oferece um potencial único de cooperação efetiva entre países. O Tratado de Lisboa é um passo importante nesse sentido, embora com certeza não será o último.
Entretanto, solidariedade e cooperação, que no caso da UE significam também renúncia à soberania, não se constituem apenas com base no poder dos fatos, mas vivem de pré-requisitos internos que vão além disso. Para mim, a história do século 20 é esse fundamento.
A história da Europa é, ao mesmo tempo, visão e projeto, e impensável sem as catástrofes da Segunda Guerra Mundial. A Europa e a UE incorporam para mim os ideais de paz, democracia e liberdade de opinião, cuja implementação cotidiana deve impedir que uma semelhante catástrofe jamais volte a acontecer na Europa.
Diante disso, considero pouco convincente definir a Europa exclusivamente através de sua herança cristã-ocidental ou do Iluminismo. Não há critérios objetivos, essencialistas, capazes de determinar nossa identidade e nosso futuro. Geógrafos e historiadores falam em fronteiras "construídas" da Europa.
O que é então essa Europa? Segundo a imagem que fazemos de nós mesmos, trata-se de um lugar onde direitos humanos, liberdade de opinião e democracia são valores não negociáveis. Mas isso não se dá devido a sua "essência", e sim porque assim o queremos. E a nem tão distante guerra na ex-Iugoslávia, assim como o envolvimento de países-membros no seqüestro de pessoas pela CIA e seu aprisionamento em Guantánamo mostram que ainda não chegamos ao fim desse desenvolvimento.
Se hoje há Estados querendo ingressar no bloco justamente devido à importância que damos a tais valores, trata-se de uma confirmação da idéia visionária e do sucesso da União Européia.
Diante disso, faz pouco sentido perguntar se a Turquia pertence ou não à Europa com base em sua "essência". Se a Turquia se vê como parte da Europa e almeja o ingresso no bloco, não importa o que digam que a Europa é ou deixa de ser, mas que Europa queremos e que papel a Turquia poderia desempenhar nesse processo.
Questões religiosas e culturais não devem ser excluídas do debate público acerca do ingresso de um país na UE, mas não desempenham papel algum na hora de tomar uma decisão contra ou a favor. As condições são sabidas: os Critérios de Copenhagen exigem uma economia de mercado efetiva e competitiva, democracia, Estado de direito, respeito aos direitos humanos, proteção às minorias e adoção do direito em vigor na UE. Este último item é verificado com base em 35 capítulos e controlado minuciosamente.
Por mais que esses critérios sejam claramente especificados, argumentos culturalistas vêm sendo usados repetidamente a fim de criticar o ingresso da Turquia no bloco. Alega-se, por exemplo, seu caráter islâmico, abertamente ou não. Mas seria preciso que deixássemos para trás perspectivas culturalistas e essencialistas, como se a cultura de um país e a atitude de seu povo fossem para sempre imutáveis. Os ex-candidatos Espanha e Irlanda são ótimos exemplos dessa mudança, assim como a própria Alemanha.
Além disso, o cumprimento desses critérios, que no caso da Turquia são severamente controlados como nenhum outro candidato jamais foi, modificará o país não só política e economicamente, mas claro que também influenciará seu caráter cultural. Basta ver os esforços necessários no campo da educação.
No entanto, isso não significa que a Turquia tenha de virar ateísta ou cristã. Pelo contrário, o país e sua gente têm de provar, num projeto sem igual até hoje, que o Islã, de um lado, e democracia, direitos humanos, economia de mercado e proteção a minorias, de outro, não são nenhuma contradição.
Há poucos anos, em Berlim, o jornalista e opositor sírio Michel Kilo lembrou que a imagem da Turquia nas sociedades do Oriente Médio havia mudado. Há não muito tempo, lembrou Kilo, o sucessor do Império Otomano era visto como traidor devido à sua participação na Otan e a suas boas relações com Israel. Hoje, o país é respeitado por suas eleições democráticas, pela liberdade de imprensa e por seu desenvolvimento econômico. Além disso, Ancara desempenha um papel importante como mediador no Oriente Médio.
A integração da Turquia na UE é, também sob este aspecto, não só do interesse turco, mas também europeu. As camadas reformistas e em prol da sociedade civil no país acompanham ansiosas seu rumo ao futuro. Os países-membros da UE não deveriam ver a Turquia como uma mera bola no jogo de sua política interna, mas aceitá-la como um desafio positivo, acompanhando-a honesta, porém criticamente em seu percurso em direção à UE. É evidente que o sucesso na realização deste projeto é do nosso interesse. (rr)
Cem Özdemir é deputado da bancada verde no Parlamento Europeu e membro de sua Comissão de Política Externa.