"Eu não tive a intenção, agora entendo que minhas atitudes são consequências do racismo estrutural."
Não foram exatamente essas as palavras que uma cantora branca de sucesso usou para tentar se desculpar pelas ações abertamente racistas contra um dos participantes (um jovem homem negro) num dos mais importantes reality shows do Brasil. Mas o teor era mais ou menos esse: aprendi que errei, me desculpem, o racismo é maior do que eu.
Tanto o racismo escancarado durante o confinamento quanto a expulsão e os pedidos de desculpa da cantora já foram tema dos mais variados sites de fofoca e notícia, mas também pautaram discussões na arena pública sobre o racismo.
Como existe uma prática recorrente entre os "racistas progressistas" de reconhecer o racismo, se desculpar e prometer mudar, não achei que essa história deveria render uma coluna. Mas ao ouvir a última música que essa mesma cantora lançou no último dia 17 de abril, pareceu-me fundamental me juntar às vozes que denunciam o que estou chamando de antirracismo de fachada.
Aqui, é preciso deixar claro que não se trata de uma questão pessoal contra ou a favor dessa cantora em específico, mas sim de colocar a lupa num comportamento que tem se mostrado padrão, e um padrão que pouco ajuda na luta antirracista.
Então, vamos por partes.
Em primeiro lugar: nada mais racista do que atribuir a culpa de suas ações racistas ao racismo estrutural e achar que a questão se encerra aí.
Sem dúvida alguma, o conceito de racismo estrutural foi um ganho que ampliou o debate e as discussões sobre racismo em toda a sociedade brasileira. Ainda que ele seja um conceito relativamente complexo, uma metáfora interessante para entendê-lo seria compará-lo à imagem da engrenagem de uma máquina. A sociedade brasileira é a máquina, a engrenagem é o racismo que (infelizmente) faz essa máquina funcionar.
Isso significa aceitar que sim, o racismo está em tudo o que fazemos e, como já dito nessa coluna, o racismo define, inclusive, aquilo que entendemos como sendo "normal" ou "aceitável".
Mas essa engrenagem gigante que é o racismo é composta por sistemas, e esses sistemas, por sua vez, são compostos por peças. Pois bem, essas pecinhas somos nós, os indivíduos que sustentam os sistemas e a engrenagem dessa máquina chamada Brasil.
Isso nos leva à segunda grande contribuição dada pelo conceito do racismo estrutural: TODOS nós estamos envolvidos na lógica racista. Ou seja: o racismo não é um problema da população negra e/ou indígena. Ele é um problema de todos. E mais: a população branca não só faz parte desse problema, como é a maior interessada em fazer com que essa engrenagem chamada racismo continue funcionando. Porque é justamente essa engrenagem que lhes garante todos os privilégios que uma pessoa branca no Brasil pode ter (inclusive o de poder escolher se o racismo é um problema seu ou não).
Dito isso, a ideia de desculpar-se por atitudes sabidamente racistas não altera em nada a lógica do racismo. Na verdade, a desculpa tem se mostrado uma ótima estratégia utilizada por muitos brancos "racistas-progressistas" que não querem ficar mal na fita, ou serem "cancelados”. Eles reconhecem seus erros, dizem que não tiveram a intenção, e a partir de então iniciam um processo de autovitimização e autopromoção escancarados, no qual ser a vilã da história não é necessariamente algo ruim (contanto que gere likes).
Desculpar-se significa pedir perdão, demostrar remorso e arrependimento. E ainda que isso possa parecer bem bonito – ainda mais saindo da boca de uma pessoa pretensamente bem-intencionada –, é pouco, ou quase nada.
A terceira grande contribuição que o conceito de racismo estrutural nos deu é sair da lógica da desculpa e rumar para a da responsabilização: reconhecer seus atos racistas, tentar entender quais foram os gatilhos e situações em que tais atos ganharam maior proporção e seu tamanho frente à luta antirracista para, a partir de então, criar mecanismos de mudança.
Então, para começar um movimento antirracista verdadeiro, é preciso humildade. Humildade frente ao tamanho e à profundidade do racismo no Brasil. Humildade em reconhecer que as pessoas brancas, grosso modo, gozam de uma profunda ignorância sobre o que é o racismo e como ele organiza suas vidas. Humildade para escutar e aprender com quem, há séculos, está à frente da luta antirracista.
E engana-se quem toma essa humildade como alguma espécie de acovardamento.
Reconhecer quem se é, os privilégios que se tem, e o fato de existir uma luta antirracista protagonizada por pessoas que dificilmente se parecem com você (pelo menos fenotipicamente) é um dos passos para a avalanche de mudanças que o antirracismo traz.
Porque, querendo ou não, a luta antirracista é necessariamente revolucionária. Acabar com o racismo é um objetivo que mira algo imenso (e necessário): mudar a maneira como enxergamos, pensamos, agimos no mundo. E para as pessoas brancas, especialmente, o antirracismo é incomodar-se com quem se é.
Por isso, desculpas sinceras não nos interessam.
Porque o antirracismo de fachada nada mais é do que o suco purinho do racismo brasileiro.
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Mestre e doutora em História Social pela USP, Ynaê Lopes dos Santos é professora de História das Américas na UFF. É autora dos livros Além da Senzala. Arranjos Escravos de Moradia no Rio de Janeiro (Hucitec 2010), História da África e do Brasil Afrodescendente (Pallas, 2017), Juliano Moreira: médico negro na fundação da psiquiatria do Brasil (EDUFF, 2020) e Racismo brasileiro: Uma história da formação do país (Todavia, 2022), e também responsável pelo perfil do Instagram @nossos_passos_vem_de_longe.
O texto reflete a opinião da autora, não necessariamente a da DW.