Justamente Kemal Kiliçdaroglu, justamente o senhor de 68 anos, com o charme e o estilo de se vestir de um funcionário administrativo aposentado, conseguiu algo em que só os espíritos mais otimistas da oposição turca teriam acreditado.
Como se zombava do líder do maior grupo oposicionista da Turquia, o Partido Republicano do Povo (CHP), ainda algumas semanas atrás. "Se for preciso, sozinho" – foram suas palavras – ele queria se pôr a caminho, deixar um sinal contra a condenação à prisão de seu correligionário, o jornalista Enis Berberoglu.
Kiliçdaroglu batizou sua marcha de Adalet, justiça. Partindo da capital, Ancara, atravessou em três semanas quase 450 quilômetros em direção ao oeste, em parte no calor ardente da Anatólia, até Istambul.
A chegada à metrópole e a manifestação final diante de centenas de milhares de apoiadores entusiásticos, à beira do estreito do Bósforo, se transformaram num testemunho eloquente em prol dos valores seculares da República da Turquia e de seu fundador, Kemal Atatürk.
Como de costume com a camisa branca de mangas curtas cuidadosamente enfiada na calça de algodão, o social-democrata – o homem da hora e já exaltado por alguns como "Ghandi turco" – prometeu, a partir do palco: "Todas as práticas antidemocráticas da Turquia" devem ter fim.
É bom ouvir essa frase, pois o próprio CHP teve participação na supressão dos valores democráticos no país. Foi também com os seus votos que o Parlamento aprovou em 2016 a suspensão da imunidade de diversos deputados, muitos dos quais foram parar na prisão.
Na marcha pela justiça, Kiliçdaroglu renunciou decididamente a símbolos partidários. Isso foi inteligente. E necessário, pois, se quiser se aproximar de suas metas, ele precisará do respaldo no Parlamento das outras duas legendas oposicionistas. Uma oposição unificada, com os kemalistas do CHP, os curdos do HDP e os ultranacionalistas do MHP, seria uma novidade nos 100 anos de história da Turquia.
O líder do CHP e seus adeptos têm tempos duros pela frente. A marcha pela justiça foi "só o começo", anunciou ele ao fim da passeata de protesto em Istambul. O notável começo de um movimento que poderá reerguer a combalida oposição da Turquia e dar nova força aos pesos e contrapesos democráticos. E quem colocou o carro em movimento terá sido justamente ele, o discreto político administrativo Kemal Kiliçdaroglu.