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Gênio ou louco? João Gilberto respondia com o silêncio

João Pedro Soares do Rio de Janeiro
7 de julho de 2019

Morreu aos 88 anos um dos baianos mais importantes da música popular brasileira: o cocriador da bossa nova João Gilberto. Figura sempre controversa, agora ele permanecerá um enigma perturbador, opina João Soares.

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João Gilberto em concerto no Theatro Municipal do Rio de Janeiro, em agosto de 2008
João Gilberto em concerto no Theatro Municipal do Rio de Janeiro, em agosto de 2008Foto: Getty Images/A. Versiani

Seria mais uma madrugada agitada no apartamento em Copacabana onde viviam Os Novos Baianos. No imóvel que virava campo de futebol no descanso do processo criativo, a margem para a incredulidade era estreita. Mas ninguém estava preparado para ouvir a porta bater às 4h da manhã. Sem rodeios, João Gilberto entrou, tocou e sentenciou: "Vocês têm que fazer música brasileira."

É perigoso questionar ordem de bruxo. A guinada no fazer musical do grupo que tateava as experimentações do rock'n roll resultou num dos fenômenos mais ricos da produção fonográfica no Brasil. Em 2007, a revista Rolling Stone Brasil organizou uma votação com 60 pesquisadores, produtores e jornalistas para eleger os melhores discos da música nacional de todos os tempos. Acabou chorare, dos Novos Baianos, ficou em primeiro lugar.

A narrativa cria a impressão de que João tinha perfeita clareza dos efeitos que sua ida ao reduto hippie de Copacabana produziria. Trata-se de apenas uma peça do misterioso quebra-cabeça que constitui o baiano de Juazeiro, um enigma perturbador. Após se debruçar intensamente sobre a vida do músico, o jornalista alemão Marc Fischer cometeu suicídio às vésperas do lançamento de seu livro Ho-ba-la-la: À procura de João Gilberto, em abril de 2011.

Antevendo os perigos de penetrar esse universo, o músico Roberto Menescal decidiu por se afastar do homem que exercia poder magnético sobre seu entorno. Antes do sucesso, João usou e abusou de favores dos amigos. De casa em casa, perambulava até o anfitrião chegar ao limite. O tom adotado em conversas dessa época faz pensar se já sabia o patamar que atingiria alguns anos depois.

"Uma vez ele pegou um violão do Tito Madi, que precisava fazer um show. Mesmo assim, o João foi pegar o violão com ele. O João falou: 'Pô, sacanagem, tenho que tocar também'. E o Tito falou: 'Pô, mas o violão é meu'. E o João foi e quebrou o violão na cabeça do Tito", relembra Menescal, aos risos.

Ninguém saberá ao certo o que se passou ao longo do ano de 1956, quando ficou trancado no banheiro de sua irmã em Diamantina (MG) e saiu com a batida de violão da bossa nova. Mais do que criar um gênero cartão-postal, João revolucionou para sempre os rumos da música brasileira.

O impacto de ouvir sua voz-trombone encaixar cada sílaba de Chega de Saudade pela primeira vez está vivo, em detalhes, na memória de alguns dos principais nomes que o sucederam no estrelato da música brasileira. Simplesmente não teria havido Caetano Veloso, Gilberto Gil e tantos outros, não fosse o toque mágico das ondas do rádio que tocavam a novidade anasalada.

"De vez em quando, um amigo perguntava: 'É verdade que ele é viado?' 'É viado', garantia outro. Ele era diferente de tudo até para um jovem de 18 anos. Eu tinha 14 anos e, na época, ter quatro anos a menos significava uma diferença brutal. Acho que, por isso, João pegou muito o pessoal da minha idade. Foi demais pra todo mundo", diz Chico Buarque na entrevista que introduz um dos volumes de seu Songbook lançado em 1999.

Os últimos anos da vida de João Gilberto foram marcados pelo isolamento e reclusão, em meio a uma batalha judicial pelos direitos de suas gravações que dividiu os filhos. No momento mais agudo do litígio, o artista idolatrado mundo afora foi despejado do apartamento em que vivia no Leblon, bairro nobre do Rio.

A situação veio a agravar uma percepção construída ao longo de décadas sobre a "loucura" do músico. João era gênio por causa dela ou apesar dela? A busca constante pelo perfeito inatingível era a razão de seu talento e existência, ou merecedora de tratamento médico? Todo o tempo, sua resposta foi o silêncio. O enigma segue por resolver.

João Soares é correspondente da Deutsche Welle no Rio de Janeiro e pesquisador apaixonado da cultura popular brasileira.

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