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Opinião: "Migração faz parte da história da humanidade"

Carlos Lopes Vorsitzender UNECA
Carlos Lopes
4 de setembro de 2015

Coragem dos exploradores europeus que emigraram no passado é a mesma dos africanos que hoje se arriscam na tentativa de chegar à Europa, opina Carlos Lopes, chefe da Comissão Econômica da ONU para a África.

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Carlos Lopes, chefe da Comissão Econômica da ONU para a África

Desde o início deste ano, uma enxurrada de imagens da ilha italiana de Lampedusa, da cidade francesa de Calais – de onde parte o Eurotúnel –, de Bodrum, na Turquia, das ilhas do leste da Grécia ou dos enclaves espanhóis de Ceuta e Melilla, no Marrocos, tomam conta das telas de TV e meios de comunicação.

Essas imagens retratam a tentativa de almas desesperadas de chegar aos países europeus. O comissário da União Europeia (UE) responsável pelo tema migração declarou neste mês que esta é a pior crise migratória desde a Segunda Guerra. Será mesmo? Talvez na Europa Ocidental isso seja percebido dessa forma, mas não é. É importante entender o porquê.

As migrações fazem parte da história da humanidade desde o tempo em que os primatas mais evoluídos começaram a sair da região de Rift Valley, na África. A história da humanidade é tão rica e complexa que temos dificuldades em estabelecer uma relação com uma origem comum muito remota – exceto para análises históricas e declarações filosóficas. É mais fácil para todos fazer uma conexão com um passado mais recente, aquele que moldou nossas identidades através de acontecimentos e interações sociais.

Os seres humanos fazem uma leitura seletiva da história. Para a maioria, a reparação é justificada por algo errado feito a alguns, mas não a outros. Desculpas são boas para alguns, mas não para outros. Propostas de paz são moralmente aceitas para alguns, mas não para outros. No fim das contas, este é um comportamento individual reproduzido em larga escala.

A maioria dos italianos se esqueceu de que foram eles que criaram nações inteiras, como Argentina e Uruguai. Britânicos, espanhóis e portugueses não relacionam necessariamente Austrália, Nova Zelândia e América do Sul aos efeitos de sua migração. Quando se referem à Indochina, os chineses devem ter apenas uma vaga ideia do motivo por que a região tem esse nome. Os americanos também sentirão um gosto amargo se for mencionado que parte dos atuais Estados Unidos foi comprado do México. A lista é longa.

No entanto, na história recente, um continente ainda não foi associado com migração para colonizar ou lucrar através da riqueza de outras regiões: a África. A África é mais conhecida por sofrer com a escravidão, pilhagem dos seus recursos naturais e tratamento internacional injusto.

A África tem lutado mais do que a maioria das regiões para encontrar uma forma de sair da pobreza. E as coisas estão melhores ultimamente, desde a virada do século, na realidade, com o país registrando índices de crescimento acima da média global e dos países desenvolvidos. Ainda assim, a narrativa sobre o continente parece ainda se fixar na migração e em análises negativas sobre a sua performance. É por isso que é importante entender primeiro por que existe a percepção de que a África nunca gerou tantos migrantes como hoje.

Os países africanos recebem muito mais migrantes que o continente exporta para as outras regiões do mundo. A verdade é que a maioria dos africanos que busca novas oportunidades fora do próprio país vai para outro país africano. Por ano, menos de 2 milhões buscam um destino fora do continente, o que é um número muito pequeno em relação ao contingente de migrantes, particularmente na Europa. Das 250 mil pessoas que tentaram entrar no continente europeu pela rota do Mediterrâneo neste ano, a grande maioria é síria – cerca de 50 mil. Trata-se apenas de uma fração dos 3 milhões de sírios instalados no Líbano. Paquistaneses, afegãos, iemenitas e outros cidadãos não africanos também usam a rota do Mediterrâneo.

O fator de atração da Europa deve ser entendido através de uma variedade de desenvolvimentos – desde o acesso à informação (6 bilhões de telefones celulares no mundo), proclamação dos direitos humanos, apelo por valores morais universais até a distribuição desigual de renda e desigualdade pelo mundo. Terrorismo e extremismo religioso também são um fator. Parece que a forte luta europeia por direitos teve um efeito negativo para o continente.

Focos de guerras como a Líbia e áreas desérticas ao redor, os Grandes Lagos [Africanos] e suas imediações e a Somália estão gerando requerentes de asilo político e também um número massivo de refugiados. Regimes africanos repressivos também contribuem. A reserva mostrada por líderes africanos em relação à migração é perturbadora, mas ainda não revela toda a realidade.

Em todos os momentos da história, o crescimento gerou emigração. Isso está acontecendo neste momento com chineses e indianos e também na África. O crescimento amplia as chances de uma nova vida, mas sua distribuição – particularmente nos primeiros estágios da ascensão de um país – é irregular e imprevisível. Aqueles que veem seus vizinhos com os meios e a esperança que eles não têm, partem. Seria um absurdo propor o bombardeio das embarcações em direção à América do Sul, lotadas de migrantes desafortunados após a Segunda Guerra. Esses migrantes estavam buscando uma vida melhor, ainda que seus países estivessem crescendo como nunca, em grande parte graças ao Plano Marshall.

Os africanos que morrem no deserto ou no mar não aceitam seus destinos e estão dispostos a arriscar a própria vida. A população jovem enxerga os países desenvolvidos da Europa como o sinal de esperança mais próximo. Para eles, trata-se da casa dos direitos humanos, que vai certamente entender o seu drama e lhes receber para trabalhar de braços abertos.

A juventude africana vai continuar crescendo quando o resto do mundo estiver envelhecendo. A dificuldade de admitir que o atual bem-estar social em todos os países em envelhecimento é insustentável tem resultado nas mais bizarras propostas de políticas econômicas.

Aceitar que existe um desafio demográfico implicaria uma vasta revisão de escolhas políticas e sociais para sustentar a economia. Enquanto todos nós testemunhamos os limites de transferência de valores da produção e trabalho para conhecimento e controle financeiro, também estamos enxergando os limites do modelo econômico dominante.

Um equilíbrio demográfico ainda é essencial, apesar do progresso tecnológico e dos aumentos de produtividade. Segurança social ou fundos de pensão não podem contar com robôs. Eles precisam de pessoas e trabalhadores produtivos. Por isso, a Europa vai ter que assumir que precisa de migrantes, como muitas vezes foi reconhecido pela Comissão Europeia.

As cerca de 2 mil mortes de que se tem conhecimento no Mediterrâneo são um trágico alerta. Até 2050, a população da África vai dobrar. Mesmo se crescer no mesmo ritmo ou ainda mais rápido que agora, o continente deve gerar um fluxo muito maior de jovens procurando oportunidades na Europa em processo de envelhecimento.

A coragem extraordinária dos exploradores europeus, que desbravaram mares e regiões desconhecidas com ferramentas científicas escassas para sua orientação e sobrevivência, já foi reconhecida. Trata-se de um exemplo incrível de determinação humana. Essa mesma coragem é mostrada hoje pelos migrantes com destino à Europa. Será que chegou a hora da compensação?