Os 14 anos de uma unidade trôpega
3 de outubro de 2004Os olhos alemães, a grosso modo, se voltam neste 3 de outubro para o Leste do país. Não por acaso o premiê Gerhard Schröder e o presidente Horst Köhler comemoram ali, em Erfurt, os 14 anos da reunificação alemã. Pois é ali no Leste que a população tem ido às ruas, às segundas-feiras, protestar contra as reformas do governo. Foi ali que, há pouco, dois Estados assustaram o país e o exterior com o triunfo nas urnas de dois partidos de extrema direita.
É ali que o índice de desemprego atinge em média 20%, num cenário de cidades atrofiadas e população insatisfeita. De onde ecoam lamentos e reclamações, que costumam irritar os ouvidos dos alemães "do outro lado". Aqueles que acreditam que o "seu país" (a ex-Alemanha Ocidental) já injetou dinheiro suficiente na horda de "preguiçosos e inertes" remanescentes do comunismo.
Estética McDonald's não basta
Clichês vão, clichês vêm, fato é que a Alemanha já vive há uma década e meia sem o Muro de Berlim e 14 anos oficialmente como um país unificado. Resta saber como e a que preço. "Os erros cometidos na reconstrução do Leste correspondem à amplitude da tarefa. Povoar novamente a região com empregos e as mentes com coragem de ir à luta é algo que demora muito, muito mais do que esperado", sentencia o diário Süddeutsche Zeitung.
Apesar das tentativas de mascarar as realidades diferentes dos dois lados do Muro, os números não mentem: desde a reunificação, dois milhões de pessoas deixaram os Estados da ex-Alemanha Oriental em direção ao Oeste do país. Embora com estradas novas e polidas, centros comerciais reluzentes, supermercados enormes nas periferias das cidades, a estética McDonald's parece não ter conseguido prender a população no Leste. Perdida sem emprego e sem perspectivas.
Borracha no passado
Enquanto os Wessis (ocidentais) reclamam de um exagero na transferência de capital para o outro lado e na falta de iniciativa de seus novos-velhos compatriotas, os Ossis (orientais) acreditam que as reformas implementadas pelo governo – para salvar pelo menos parte de um Estado do bem-estar social a caminho da falência – se voltam contra eles.
O grande tropeço da reunificação talvez tenha sido o de querer passar rapidamente uma borracha no passado dos alemães orientais, "devorando tudo o que o Leste tinha", analisa o Süddeutsche Zeitung: "devorando a vida deles até então, suas experiências, sua auto-estima, sua indústria, os velhos ideais, a antiga elite oriental, os colaboradores oficiais e não oficiais do Stasi (o serviço secreto da RDA), os políticos dos primeiros momentos após a reunificação. O maquinário ocidental devorou o orgulho e a segurança das pessoas, devorou aquilo que era ruim, mas também aquilo que era bom na antiga Alemanha Oriental".
Numa tentativa de colocar no novo país um selo que, na verdade, não colava. Pois se de um lado os orientais olhavam perplexos e até inertes tudo o que acontecia, do outro lado os ocidentais pouco interesse tinham em conhecer o passado de seus conterrâneos sob o comunismo. Pois, afinal, rezava a lenda, o life style capitalista do Oeste acabava de "ganhar a corrida". Hoje, 14 anos mais tarde, o país vai percebendo aos poucos que a coisa não é bem assim.
Nostalgia por todos os lados?
Símbolos do Estado do bem-estar ocidental estão se despedindo aos poucos do país, com um aperto de cintos do governo que se torna cada vez mais difícil de ser ignorado. Até mesmo ícones dos áureos tempos ocidentais vão mostrando suas feridas até então escondidas. O atual interesse público pelos problemas financeiros da cadeia de lojas de departamentos Karstadt mostra que, da mesma forma como os Ossis lametam um passado perdido, também os Wessis choram por dias que já se foram.
Um verdadeiro ícone do consumo hedonista dos 80 e 90, a Karstadt e suas similares estiveram por décadas presentes nas cidades alemãs, protegidas no meio das ruas destinadas aos pedestres consumidores, as Fussgängerzonen. A preocupação com seu destino ilustra o luto ocidental pelo símbolo de um sistema cada dia mais capenga.
Anos 90: entre o "não mais" e o "ainda não"
Quase esquecidos na retrospectiva desses 14 anos de Alemanha reunificada ficam os anos semidourados após a queda do Muro. Pelo menos aqueles passados nas grandes cidades do Leste e principalmente na parte oriental de Berlim.
O último suspiro dos 80 e os primeiros anos dos 90 – esses "áureos tempos de subculturas coloridas. Situadas na transição histórica entre o não mais e o ainda não, elas ampliavam seu terreno, ocupavam casas e convidavam outsiders e loucos de todo o mundo para viver ali. Ao visitar esses lugares hoje, não se vê quase nenhum rastro do início dos 90. Nesses centros voltou a reinar a paz e os costumes burgueses, homens e mulheres estabelecidos, café espresso e transações comerciais", recorda em tom nostálgico o diário berlinense taz.
Imagens que estão definitivamente enterradas na memória da Alemanha de 2004, que conserva ainda hoje suas mentes semidivididas entre ocidentais e orientais. Esses muros entre as cabeças, contudo, irão também algum dia ruir. No mais tardar, quando as crianças de hoje se tornarem adultas. Num tempo em que as Alemanhas Ocidental e Oriental não mais passarão de verbetes enciclopédicos. Ou ainda não?