Os talibés e o drama de uma infância perdida
18 de janeiro de 2014Afastada do centro da cidade de Rufisque, no oeste do Senegal, fica a estrutura abandonada, sem portas e janelas. Nas paredes do prédio, rabiscos formam as figuras de bonecos e estrelas. Aqui as fantasias de criança convivem com uma realidade amarga. Sentados no chão de areia, meninos conhecidos como talibés se juntam para comer o que conseguiram pedir no vilarejo.
São crianças de 4 a 12 anos de idade que foram entregues pelos pais aos marabus – poderosos líderes religiosos do país – para ter aulas sobre o Alcorão. Os professores têm uma reputação social elevada e é a eles que muitas famílias pobres do Senegal e da vizinha Guiné-Bissau confiam a educação dos filhos.
Nesta escola alcorânica vivem cerca de 40 crianças. Em coro, elas recitam repetidas vezes trechos do Alcorão. Tábuas com palavras em árabe e exemplares do livro sagrado se espalham pelo chão. Pisando sobre os livros, Móa, de 8 anos, mostra o quarto onde dorme com os colegas. "Gosto de viver aqui. Eu tenho paz e durmo muito bem", diz.
No cômodo, os meninos se deitam sobre sacos plásticos, sujos por causa da areia. Não há camas, cobertores, tampouco travesseiros. "Eles não reclamam de nada. Os meninos sabem que se contarem para alguém sobre os abusos que sofrem ali, serão violentados", relata o senegalês Serge Brige, morador de Rufisque.
O dia dos talibés começa cedo na daara – como é chamada a escola onde vivem. Por volta das 6h, eles acordam e estudam o Alcorão. Depois, saem com potes de plástico para pedir dinheiro nas ruas e conseguir algo para comer. Cada marabu estipula uma quantia diária. Se os meninos não conseguem cumprir, são espancados.
Soibou Sall, de 28 anos, lembra-se do período em que viveu numa daara localizada num vilarejo a duas horas da cidade de seus pais, M'bour, no Oeste do Senegal. Todos os dias ele tinha de voltar com 500 francos, o equivalente a 1 dólar. "Tudo o que fazíamos era contra nossa vontade. Tínhamos que levar o dinheiro para sustentar o marabu e sua família, porque ele vivia disso. Se não levássemos, apanhávamos. Eu sofri muito. Uma vez fui espancado porque cheguei atrasado. Ele usava uma corda molhada cheia de grãos de areia. A dor era muito grande", conta.
O ex-talibé foi entregue ao marabu pelos pais quando tinha 8 anos de idade. "Foi um choque. Eu pensei 'por que para conhecer Deus é preciso apanhar tanto?'. Mas o marabu dizia que apanhar era uma benção de Deus. Isso me ajudava a suportar, mas era muito estranho para mim. Trabalhar na roça, buscar comida, pedir dinheiro... tudo era feito contra nossa vontade. Era uma rotina muito pesada para uma criança."
Exploração de crianças
As escolas alcorânicas surgiram nas zonas rurais do Senegal. Os meninos trabalhavam na lavoura e tinham aulas de Alcorão. Com as constantes secas, os marabus foram forçados a se aproximar das grandes cidades, como Dacar, a capital do Senegal. Com dificuldades financeiras para sustentar todas as crianças, o incentivo à mendicância infantil se tornou uma atividade rentável.
"Em princípio, eles trabalhavam no campo para a própria subsistência da escola alcorânica, mas depois a exploração dos meninos se tornou um negócio interessante. Uma vez estipulada uma quantia para cada um, os marabus passaram a ter uma riqueza fácil", explica a missionária brasileira Sirlene Câmara, que há 18 anos trabalha com ex-talibés em Dacar, capital do Senegal.
Serign Modio, de 25 anos, já foi talibé. Hoje ele é professor numa daara na cidade de Rufisque. Ele explica que as crianças acordam todos os dias às 5h para ter lições de Alcorão. Elas também estudam à noite e sempre revisam a lição do dia anterior. Depois das aulas, vão pedir dinheiro.
"É importante porque sem dinheiro elas não conseguem chegar à vila. É melhor para todos os meninos, porque depois de crescidos, terão educação e boas oportunidades", argumenta. Modio afirma que se sente responsável por ensinar o Alcorão aos talibés. "Quando eu morrer, vou conversar com Deus e dizer que levei os ensinamentos sagrados para eles."
Episódios de violência
Os talibés se vestem com roupas velhas e rasgadas e a maioria anda descalça. Eles chegam a mendigar nas ruas de Dacar até sete horas por dia. O relatório À custa das crianças, divulgado pela organização Human Rights Watch em 2010, aponta que 50 mil crianças são exploradas por marabus na África Ocidental.
São muitos os relatos de agressão. A missionária Sirlene Câmara se recorda da história de um ex-talibé. "Aquele menino ficou vários dias amarrado com correntes a uma cama porque não levou a quantidade de dinheiro exigida. Eu vi as cicatrizes", relembra.
Além de ter que pedir esmola, os meninos são obrigados a trabalhar ainda mais quando ficam doentes. São eles que precisam conseguir dinheiro para comprar os medicamentos. Com medo de voltar à daara e ser castigado por não ter recolhido a quantia necessária, o menino Demba, de 8 anos, ficou nas ruas de Rufisque sofrendo com os sintomas da febre amarela.
"Eu encontrei Demba muito doente na rua. Ele estava com febre e calafrios. Eu senti no meu coração que deveria ajudá-lo. Eu o levei para o hospital e ele foi medicado. Missionários compraram novas roupas e alimentos", conta o senegalês Serge Brige.
Os pais de Demba são do Sul do Senegal. Ele não sabe com que idade chegou à daara. Desde então, ele não tem nenhum contato com a família. "Faz muito tempo que não os vejo. Eu cheguei muito pequenino. Eu quero ver minha mãe, mas não tenho como ir", relata o talibé.
Depois de poucos minutos, a conversa é interrompida por um dos jovens da daara. Demba está apreensivo. Ele corre de volta para o local com medo de sofrer agressões.
Abandono
Por chegarem muito pequenos às daaras, muitos meninos desconhecem o que envolveu a saída deles da casa dos pais. Bala, de 11 anos, não vê a mãe há sete. "Minha mãe está viva e tenho saudades dela. Estou aqui em Rufisque desde muito pequenino. Depois da escola, eu vou pedir dinheiro", diz. "Eu estou feliz aqui, mas prefereria viver com meus pais."
O ex-talibé Soibou Sall foi levado à daara pelos pais porque o tio dizia que havia uma profecia. "Ele falou que eu seria um grande líder do Islã. Em princípio, eu fiquei contente em estudar o Alcorão e conhecer Deus, mas depois de uma semana já queria voltar. E não podia."
Segundo a missionária Sirlene Câmara, quando chegam à adolescência, os meninos começam a esconder pequenas quantias de dinheiro para tentar fugir e reencontrar a família. "É uma situação emocional muito degradante, porque eles finalmente descobrem que foram doados para esses líderes. Eles são levados de volta para a escola pelos próprios pais, apesar de estes saberem das condições a que os filhos estão expostos. A grande maioria das crianças não aceita e, numa segunda fuga da daara, vai para as ruas", conta.
Geralmente, os ex-talibés fogem para locais distantes das escolas alcorânicas. Grande parte segue em direção à capital Dacar. "Muitos se organizam em gangues. Eles ficam expostos a toda problemática de rua: prostituição, drogas e violência", diz Sirlene.
Soibou Sall viveu na escola alcorânica até os 14 anos. "Eu queria sair de lá com a benção da minha família, mas meu pai não permitiu. Eu fugi para Dacar e passei a viver como menino de rua", conta. Depois de seis meses, o ex-talibé encontrou o abrigo da missão religiosa coordenada por Sirlene Câmara.
Pela manhã, depois de pedir dinheiro nas ruas, muitos talibés procuram a casa de acolhida. "O abrigo guarda o dinheiro que eles arrecadaram e devolve no fim do dia. Eles podem almoçar, ter aulas de francês e atendimento médico. Eles voltam para as ruas, arrecadam mais dinheiro e voltam às daaras. Não podemos nos confrontar com os marabus e a cultura local", argumenta Sirlene.
Churrascaria brasileira
Ex-talibés que fugiram e se tornaram moradores de rua têm hoje a oportunidade de trabalhar num restaurante criado pela missão. A Churrascaria Brasil começou em um quintal e hoje serve a elite da capital senegalesa. Todos os funcionários passaram pelo abrigo mantido pela entidade religiosa.
"Os meninos se tornaram profissionais em restaurante. Os clientes nem imaginam que estão sendo atendidos por ex-talibés e ex-meninos de rua", conta Sirlene Câmara. "Eles preparam muito bem a farofa, a feijoada e o churrasco."
Soibou Sall começou a trabalhar na churrascaria em 2002. "Trabalhar no restaurante me ajudou a reconstruir minha vida depois de anos como talibé e menino de rua." Hoje ele é também pastor e cantor evangélico.