Pandemia completa um ano no Brasil em seu pior momento
26 de fevereiro de 2021Há um ano, o primeiro caso do novo coronavírus era confirmado no Brasil, em um homem de 61 anos que havia viajado à Itália. Internado no hospital Albert Einstein, em São Paulo, ele se curou pouco mais de duas semanas depois, mas o vírus continuou chegando ao país e logo se espalhou, inicialmente entre as classes mais altas e, depois, entre os mais pobres, provocando a morte até quinta-feira (25/02) de 251,5 mil pessoas, segunda maior marca mundial.
Pandemias são eventos pouco frequentes, que testam a capacidade de cientistas buscarem soluções, a coesão das sociedades e a liderança de políticos. No mundo, já há diversas vacinas eficazes aprovadas, mas com produção ainda insuficiente, e alguns países já discutem a volta à normalidade, como Israel.
Esse cenário ainda está longe do Brasil, que atravessa um momento sombrio da covid-19. O número de mortes diárias segue em patamar alto, acima do pico anterior da doença, em julho de 2020. São 36 dias seguidos com marcas acima de mil mortes em 24 horas, na média móvel de sete dias. No total, mais de 10,4 milhões de pessoas, ou 5% da população, já tiveram diagnóstico de infecção pelo vírus, número que deve ser bem maior devido à falta de exames e a subnotificação.
O SUS, além disso, enfrenta o seu pior momento desde o início da epidemia. Segundo balanço da Fiocruz, as taxas de ocupação de UTIs do sistema público batem recorde atualmente - 17 capitais têm lotação de pelo menos 80%.
Enquanto isso, a vacinação caminha a passos lentos. Até esta quinta-feira, 6,2 milhões de pessoas haviam recebido ao menos a primeira dose da vacina, menos de 3% da população. O ritmo se deve à escassez estrutural do imunizante em todo o mundo, mas também a decisões do governo federal que não garantiram com antecedência um rol diversificado de fornecedores de vacinas.
As perspectivas de superação da pandemia, afirmam especialistas, não são positivas. Pelo contrário: espera-se que 2021 será ainda pior que o ano passado. Os números de casos e mortes estão no patamar mais alto, e as recomendações científicas parecem não terem sido adotadas de forma adequada pela população.
Efeitos políticos
A chegada e a disseminação do coronavírus ao Brasil coincidiu com o mandato de um presidente de extrema direita, Jair Bolsonaro, que negou a gravidade da doença e a importância do saber científico para lidar com a pandemia. O exemplo da sua liderança foi o oposto das recomendações de especialistas: pouco usou a máscara, incentivou as aglomerações e semeou dúvidas sobre as vacinas.
À frente do governo, demitiu dois ministros da Saúde que se recusaram a apoiar o uso de remédios sem eficácia contra a doença, e enfraqueceu a coordenação na área de saúde pública com estados e municípios.
Bolsonaro, porém, não esteve sozinho na sua forma de encarar a doença. Sua posição foi acompanhada por parte dos prefeitos e governadores, além de parcela significativa da população: durante a pandemia, o presidente manteve em média o apoio de pelo menos um terço dos brasileiros.
A estratégia de Bolsonaro de desacreditar a ciência e confrontar outros entes federados derivou de um cálculo político para reduzir sua responsabilidade pela gestão do problema e se isentar de ser punido pela população, segundo a cientista política Lorena Barberia, coordenadora científica da Rede de Pesquisa Solidária, que reuniu pesquisadores de diversas instituições para produzir estudos sobre a pandemia.
"Ele procurou responsabilizar outros agentes pelos problemas e o enfrentamento da covid para tentar ser menos afetado politicamente. Se ele fosse liderar a resposta [do país] à pandemia, seria mais responsabilizado por ela", diz. E ele teve relativo sucesso nessa estratégia, conforme mostra sua popularidade.
Um dos confrontos do presidente durante a pandemia foi com o governador João Doria, potencial adversário nas eleições presidenciais de 2022, que envolveu o Instituto Butantan em um acordo com a farmacêutica chinesa Sinovac para trazer a vacina Coronavac ao Brasil.
Bolsonaro chegou a dizer que não compraria "a vacina chinesa de Doria", mas depois voltou atrás e fechou um acordo de compra para não ficar atrás de seu adversário na guerra das vacinas. A iniciativa de Doria fortaleceu sua imagem nacionalmente, mas o governador paulista enfrenta disputas no seu partido, o PSDB, para se lançar ao Palácio do Planalto.
A popularidade do presidente também teve ajuda do auxílio emergencial, que pagou R$ 600 por mês por pessoa de abril a agosto – o dobro para mães chefes de família – e metade desse valor de setembro a dezembro. Em seu momento mais expandido, o programa chegou a 68 milhões de brasileiros, ou cerca de 40% das famílias. Inicialmente, o governo Bolsonaro propôs um auxílio mensal de apenas R$ 200, mas aceitou um valor maior após pressão do Congresso.
Em outubro, o presidente chegou a ser avaliado como "ótimo" ou "bom" por 40% da população, segundo pesquisa do PoderData. Esse apoio reduziu-se com o fim do auxílio, mas se mantém hoje em cerca de um terço dos eleitores, um piso confortável para se proteger de eventuais processos de impeachment.
Impacto na economia
Além dos efeitos políticos, o auxílio emergencial também foi determinante no desempenho da economia na pandemia. O país já vinha em trajetória de desaceleração em janeiro, antes do vírus chegar, e afundou com a adoção de medidas de isolamento social e o medo de as pessoas saírem às ruas e se contaminarem. Em abril, o volume de vendas do varejo foi 17,2% menor do que no mês anterior, enquanto o volume de produção da indústria caiu 19,5%.
A criação do auxílio reverteu essa tendência, com efeitos positivos já em maio. A transferência mensal fez com que milhões de famílias pobres tivessem uma renda superior à de antes da pandemia, e o dinheiro foi utilizado para a compra de alimentos e bens e pequenas obras para melhorar a condição de suas residências, estimulando a economia. A alta do consumo, conjugada às medidas de distanciamento social, por sua vez, levaram a alta de preços de alguns produtos e à falta de suprimentos em alguns setores.
O aquecimento proporcionado pelo auxílio fez com que a queda do Produto Interno Bruto (PIB) em 2020 tenha sido abaixo da projetada no início da pandemia. O número oficial do ano passado será divulgado apenas em março, mas a última previsão de 2020 do mercado, registrada no Boletim Focus do Banco Central, estimava retração de 4,38% do PIB. No meio do ano, o mercado projetava uma queda de 6,5% do PIB, e o Fundo Monetário Internacional chegou a estimar inicialmente uma recessão de 9,1% para o Brasil.
No total, as nove parcelas do auxílio consumiram R$ 295 bilhões, ou cerca de 4% do PIB do país, gasto insustentável no longo prazo, que só foi possível pela decretação do estado de calamidade pública e o afastamento temporário dos limites de despesa e endividamento. A pressão sobre as contas públicas fez o governo reduzir o valor do benefício à metade a partir de setembro e encerrá-lo em dezembro, o que foi imediatamente sentido no desempenho da economia, que ainda sofre efeitos da pandemia. No último mês do ano, o varejo registrou retração de 6,1%.
A política governamental para manutenção de empregos durante a pandemia não teve o mesmo sucesso que o auxílio emergencial e, como em outros países do mundo, houve alta do desemprego, que atingiu 14,6% no terceiro trimestre de 2020, ou 14,1 milhões de pessoas, um recorde na série histórica.
Houve também aumento no número de desalentados, pessoas que não trabalham e desistiram de procurar emprego por acharem que não irão encontrar uma vaga. No trimestre de junho a agosto, chegou a 5,9 milhões de pessoas, também um recorde.
Em janeiro e fevereiro deste ano, não houve auxílio emergencial. O governo e o Congresso discutem recriá-lo por mais alguns meses, em um valor reduzido, mas ainda não há acordo sobre o formato.
Evolução da pobreza
As circunstâncias da pandemia e a extensão do auxílio fizeram o Brasil experimentar um panorama inesperado em relação à pobreza ao longo desse ano, com alta amplitude de variação.
Em seu auge, o auxílio emergencial fez com que o número de pessoas abaixo da linha de pobreza (famílias com renda mensal per capita menor que R$ 455) e em situação de pobreza extrema (famílias com renda mensal per capita menor que R$ 155) chegasse em agosto a seu patamar mais baixo da série histórica, iniciada em 1976.
Naquele mês, a pobreza afetava 18% da população, ou 38,9 milhões de pessoas, e a pobreza extrema alcançava 2,3% da população, ou 4,8 milhões de pessoas, segundo cálculos feitos pelo economista Daniel Duque, pesquisador do Ibre/FGV, a partir das edições especiais da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, a Pnad Covid, realizadas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
O período de relativa segurança alimentar que beneficiou muitos brasileiros, porém, chegou ao fim com a redução do valor e, depois, com o encerramento do auxílio em plena pandemia, e os números de pobreza voltaram a crescer já a partir de setembro.
Como resultado, em janeiro de 2021 o número de pessoas em situação de pobreza projetado foi um dos maiores da série histórica. Segundo cálculos de Duque, no primeiro mês deste ano, de 25% e 30% da população, entre 52,7 milhões a 63,3 milhões de pessoas, estavam abaixo da linha de pobreza, enquanto a pobreza extrema alcançava de 10% a 15% da população, algo entre 21 milhões e 31 milhões de pessoas.
Fernando Burgos, professor da FGV-EAESP e especialista em políticas sociais e desigualdade, também aponta que, apesar do relativo sucesso, a implementação do auxílio emergencial teve falhas que excluíram muitas pessoas do benefício.
"Sabemos que teve uma parcela da população que ficou de fora. Não são 'invisíveis', como o [ministro da Economia] Paulo Guedes fala. Quem está na ponta [do sistema de assistência social] sabe onde elas estavam. Era para o indicador de pobreza ter chegado a zero. Muitos se acostumam a deixar algumas famílias para trás, mas isso é tratado com uma naturalidade que não consigo absorver", diz.
Um problema, segundo Burgos, foi a necessidade de fazer o cadastro por celular, tarefa inviável para parte da população analfabeta. A "segunda crueldade", diz, é a falta de previsibilidade sobre quando o auxílio irá voltar e com qual valor.
"As pessoas hoje continuam precisando, e ninguém sabe quando ele volta. É fácil, a partir de Brasília ou da Faria Lima, usar os dados e fazer chutes, mas esquecer que, do outro lado, as pessoas estão esperando esse dinheiro, tendo que decidir se compram botijão de gás ou não", afirma.
Desafios na educação
Outro reflexo da pandemia se deu no ensino, que atingiu em cheio os brasileiros em idade escolar. Mesmo na rede privada, muitas escolas ainda não estavam preparadas para adotar aulas online, um desafio que se tornou ainda maior na rede pública.
A desigualdade no acesso à educação foi agravada pela falta de condições de milhões de estudantes, que enfrentaram carência de conexões rápidas à internet, computadores e ambiente doméstico propício para a aprendizagem à distância.
A reação do poder público, por sua vez, foi prejudicada pela falta de uma coordenação efetiva do governo federal, diz Lucia Delagnello, diretora-presidente do Centro de Inovação para a Educação Brasileira (CIEB).
"Houve uma falta de protagonismo do MEC [Ministério da Educação], fruto de várias mudanças que aconteceram na gestão da pasta. Não houve uma coordenação de esforços para ajudar as redes a fazer essa transição", afirma.
Uma das consequências foi que as unidades da federação adotaram ritmos e planos muito diversos para lidar com a transição para o ensino online. Alguns estados, como Espírito Santo, Rio Grande do Sul e Tocantins, deixaram seus alunos por mais de cem dias sem aulas à distância após o fechamento das escolas, enquanto em outros a implementação da alternativa virtual se deu de forma mais rápida, segundo dados de estudo publicado em janeiro pela Rede de Pesquisa Solidária.
"O impacto da pandemia na aprendizagem das crianças foi muito grande e negativo. A grande maioria delas não conseguiu, ou por não ter acesso, ou pela falta de experiência [das escolas] em trabalhar de forma remota, manter um aprendizado adequado", afirma Delagnello.
Ela diz, porém, que se 2020 foi o ano da "resposta", este será o da "consolidação" das experiências com o ensino virtual ou híbrido que tiveram sucesso. "Muita gente questionava se a tecnologia era importante para a educação. Agora o questionamento é como fazer", afirma.
Futuro
As perspectivas de superação da pandemia ainda são desalentadoras no Brasil, na opinião de Barberia, da Rede de Pesquisa Solidária. Ela receia que 2021 será "ainda pior" que o ano passado, pois o número de casos e mortes está em seu patamar mais alto e as recomendações científicas não foram absorvidas de forma adequada pela população, mesmo em questões básicas como distanciamento social e uso adequado de máscaras.
Segundo ela, o que se faz hoje, em muitos estabelecimentos comerciais que seguem abertos, é um "teatro da higiene", ineficaz para evitar a propagação do vírus pelo ar. O ritmo da vacinação está muito mais lento do que o necessário para conseguir imunizar a população com sucesso, e falta "vontade política" para adotar as medidas necessárias, como fechamento do comércio, em muitos lugares do país.
O pessimismo é compartilhado por Burgos, da FGV-EAESP. Ele diz que a situação atual é "muito grave", com parte da população "abrindo mão de uma série de precauções". No aspecto social, ele lembra que as redes de doação e distribuição de alimentos, que fizeram a diferença no começo da pandemia, hoje se enfraqueceram, e que os sinais do governo federal não indicam que ele assumirá um papel mais forte para coordenar a proteção dos mais vulneráveis.