"Pandemia marca o fim da dominância americana"
7 de abril de 2020A pandemia do novo coronavírus expõe a fragilidade social e política dos Estados Unidos e o peso geopolítico da China, avalia Kevin Casas-Zamora, ex-vice-presidente e ex-ministro do Planejamento da Costa Rica. Para o doutor em ciências políticas pela Universidade de Oxford, o surto marcará o fim da influência americana no mundo e terá consequências profundas também para as democracias na América Latina.
Em entrevista à DW, Casas-Zamora afirma que as populações do Brasil e do México poderão sofrer se, respectivamente, Jair Bolsonaro e Andrés Manuel López Obrador continuarem rejeitando a ciência e isso teria um impacto em toda a região.
"A demografia pode ser favorável, mas as capacidades [dos sistemas de saúde brasileiro e mexicano] são muito limitadas", diz Casas-Zamora, que é secretário-geral do Instituto Internacional para a Democracia e Assistência Eleitoral (Idea International), de Estocolmo. "O número de leitos hospitalares por habitante, por exemplo, é muito menor do que na Europa. Qualquer pico epidêmico se transforma uma catástrofe."
Na entrevista, Casas-Zamora fala ainda sobre a situação na Venezuela e medidas para conter o avanço da pandemia que ameaçam as democracias na América Latina.
DW: Quais são os cenários dessa epidemia para a América Latina?
Kevin Casas-Zamora: A intensidade de propagação dessa doença é diretamente proporcional ao nível de globalização das diferentes regiões. E ela está apenas começando na América Latina. Acredito que a intensidade da pandemia dependerá muito da qualidade de liderança e da força do Estado em cada país. Na América Latina, nem todos os Estados conseguem controlar todo seu território; isso depende também da coordenação entre diferentes instituições e da qualidade dos recursos. Outro ponto fraco é a quantidade de recursos fiscais disponíveis.
Então a América Latina sairá mal desta crise?
Países com Estados mais robustos, como Uruguai, Costa Rica e possivelmente Chile, vão se sair melhores. Países do Triângulo Norte da América Central, que têm Estados muito frágeis, poderão sair terrivelmente mal. Algo interessante que aconteceu nesses dias é que o presidente do Peru, que não tem um Estado forte, se mostrou muito bom, competente e levou essa crise a sério.
E como você vê o desempenho, até agora, de países maiores como Brasil e México, que têm sido fortemente criticados por não tomarem medidas mais rigorosas?
Na reação do presidente do México, Andrés Manuel López Obrador, e do Brasil, Jair Bolsonaro, há uma característica comum: a rejeição das evidências e da ciência. É algo que os populistas partilham, independentemente de serem da direita ou da esquerda. No entanto, existem diferenças. A fragilidade de Bolsonaro é maior do que a de López Obrador. Bolsonaro controla uma coalizão heterogênea e tem poucos aliados no Congresso. Já López Obrador tem um controle mais forte do sistema político. Mas se eles continuarem sendo reticentes à ciência, seus povos sofrerão e, como estamos falando dos dois maiores países da América Latina, isso seria uma catástrofe para toda a região.
Contudo, suas atitudes não são totalmente irracionais. Eles apostam fortemente que suas populações são jovens, suas economias são frágeis e vão se sair melhor com uma estratégia mais gradual e não tão drástica...
A demografia pode ser favorável, mas as capacidades [dos sistemas de saúde brasileiro e mexicano] são muito limitadas. O número de leitos hospitalares por habitante, por exemplo, é muito menor do que na Europa. Qualquer pico epidêmico se transforma uma catástrofe.
Estados mais frágeis, como Honduras, Guatemala e El Salvador, tomaram medidas mais drásticas, impuseram quarentenas duras, têm se militarizado e até reduziram as liberdades fundamentais. Isso não é preocupante do ponto de vista democrático?
Estamos vendo uma tendência de aplicar e estender os poderes de emergência. Em situações como essa, as pessoas buscam o abraço paternal da figura autoritária para se sentirem protegidas. Por isso, é tão importante ter instituições que diminuam a incerteza, como os Estados de Bem-Estar Social que possuem uma rede de proteção social ou instituições capazes de controlar a violência, que é uma fonte de ansiedade muito grande.
Se as democracias são incapazes de controlar a ansiedade social, a tentação autoritária se torna muito forte. O problema é que as restrições às liberdades fundamentais tendem a ficar num contexto onde existe uma cultura autoritária.
Por que a opção autoritária é tão tentadora?
O caminho autoritário é mais fácil do que o democrático, porque este último envolve resolver questões complicadas, como impostos. Não é possível ter um Estado forte sem receitas e isso implica também fortalecer o Estado de Direito. São mudanças muito grandes, mas o caminho democrático é mais bem-sucedido a longo prazo. O risco é muitos países optarem pelo atalho, e isso seria uma tragédia depois de todo o progresso feito na democratização.
Quais são os fatores que vão pesar na balança?
A cultura democrática conta muito. Eu não vejo perigo de um retrocesso das liberdades no Uruguai e na Costa Rica, apesar das restrições momentâneas. Mas, em outros países, essa cultura não existe. Um fator-chave é a sociedade civil que não se deixa vencer pelo medo e que está consciente da importância de proteger as liberdades democráticas. O México, por exemplo, tem uma sociedade civil altamente mobilizada e que é um peso importante diante de qualquer pretensão autoritária.
Qual é a sua opinião sobre a situação da Venezuela? Há muito tempo, o país tem o sistema de saúde em colapso e uma população com um elevado grau de vulnerabilidade, além da luta pelo poder entre Nicolás Maduro e a oposição...
O maior perigo na América Latina é que o vírus saia do controle na Venezuela. Mas não sei se isso terá consequências políticas. Uma das consequências da globalização é a possibilidade de se migrar mais facilmente. A Venezuela está em crise há muito tempo e há três opções nesse tipo de situação: sair, expressar sua discordância ou se conformar. Em grande parte, os venezuelanos optaram por emigrar. E isso se tornou uma válvula de segurança para o governo. Se houver um agravamento da situação sanitária no país, milhões de pessoas continuarão partindo.
Maduro não tem dinheiro, os preços do petróleo caíram e ele pediu recentemente um crédito ao Fundo Monetário Internacional (FMI), que foi rejeitado. O novo coronavírus pode forçar Maduro a negociar?
A Venezuela atingiu o fundo do poço há um tempo. Se o FMI não der dinheiro ao país, a Rússia ou a China o farão. Não me parece que a dinâmica irá mudar fundamentalmente e não vejo como provável um diálogo entre os dois grupos.
Como a geopolítica na região mudará após o novo coronavírus?
Este é o fim do século americano. Quando a poeira baixar em alguns anos, ficará evidente que o ator internacional dominante é a China. Essa crise revela a terrível fragilidade social e política dos EUA, e veremos as consequências na América Latina. Mesmo com todas as críticas que se possam fazer, como o fato de os Estados Unidos terem apoiado muitas ditaduras, a expansão global da democracia no último meio século tem relação com o fato de o ator dominante no mundo ter sido uma democracia liberal. Em breve não será mais o caso e isso terá consequência para todos.
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