"Percepção da violência nem sempre reflete realidade", diz especialista
21 de fevereiro de 2014Desde o fim de janeiro, quando um adolescente de 15 anos foi agredido e preso nu a um poste no bairro do Flamengo, no Rio de Janeiro, episódios dos chamados "justiceiros" passaram a chamar a atenção pelo Brasil.
Muitas vezes, tais atos são "justificados" com um suposto aumento da criminalidade, diante da qual o "cidadão comum" deve reagir. Mas, segundo Carolina Ricardo, coordenadora de Justiça e Segurança Pública do Instituto Sou da Paz, ONG de combate à violência, a relação entre justiçamento e insegurança não é correta.
Ela ressalta que nem sempre a percepção das pessoas corresponde à realidade. Na Bahia, por exemplo, onde houve um justiçamento recente, roubos caíram pela metade entre 2011 e 2012.
Carolina Ricardo alerta também para uma atitude reativa dos brasileiros em relação à violência, visível em um clamor social por aumento de pena e criação de novos crimes. "Um congressista propõe uma lei e ganha a opinião pública porque as pessoas tampouco têm claras as origens dos problemas. É o que chamamos de populismo penal", diz, citando como exemplo o projeto de lei antiterrorismo, que tramita no Senado e ganhou força após a morte do cinegrafista Santiago Andrade no Rio.
DW: Muitas vezes a justificativa usada por defensores dos "justiceiros" é um suposto crescimento da violência e uma inação do Estado. Até que ponto isso é verdade?
Carolina Ricardo: É preciso desfazer a relação entre esse fenômeno e um aumento da criminalidade. Esses linchamentos e processos de punição individual são um tipo de violência complexo, que reflete uma falta de confiança nas estruturas do Estado e na Justiça. Há também uma questão cultural e histórica. Existem padrões violentos na sociabilidade brasileira que não são de agora.
Essa afirmação recorrente de que a violência aumentou no Brasil está correta?
Qualquer discurso generalista como esse precisa ser desconstruído. Na verdade é uma percepção de violência, que nem sempre reflete dados reais. Se eu tenho medo, pouco importa se diminuiu ou aumentou. Em relação às estatísticas, é muito difícil fazer uma análise sobre o país como um todo, porque a realidade brasileira é muito diversa. Depende do estado, da cidade e até mesmo do bairro. Então esse tipo de discurso para justificar práticas de linchamento não funciona. Além disso, há vários tipos de crime e de violência.
O que pode ser feito para que o cidadão se sinta mais seguro?
Para diminuir essa percepção de violência, é muito importante que haja esclarecimento dos crimes e que isso venha a público. O Estado tem que mostrar que há uma investigação séria. Não de forma sensacionalista, mas prestando contas dos casos resolvidos. Sem isso as pessoas continuam com medo. E esse discurso da impunidade e falta de confiança no poder público, usado para justificar práticas de linchamento, segue forte.
Qual crime influencia mais a sensação de segurança do cidadão?
Certamente é o roubo o que mais afeta percepção de violência das pessoas. Até em termos quantitativos, porque é o crime do varejo. Informações como "fulano foi roubado na frente da minha casa" circulam com muita força, mais até do que sobre homicídios. O roubo é praticado com violência, então gera um trauma para vítima, a pessoa fica com medo e impacta a forma como ela vive a cidade. Em relação ao latrocínio [roubo seguido de morte], o pânico é ainda maior.
E o que as estatísticas mostram em relação aos roubos?
Para crimes contra o patrimônio é mais difícil fazer um balanço nacional. Há muita sub-notificação, as vítimas deixam de fazer boletim de ocorrência. Mas, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, no Rio de Janeiro, por exemplo, os roubos diminuíram de 2011 para 2012. Já os roubos de veículo aumentaram no mesmo período. Este é um dado mais confiável em termos de registro, devido ao seguro. Em São Paulo ambos os crimes aumentaram entre 2011 e 2012.
Os roubos afetam igualmente todas as classes?
Tendemos a achar que os crimes contra o patrimônio só atingem os mais ricos. Mas não é verdade. É um crime muito democrático. Em São Paulo, os bairros que mais concentram roubos de veículos estão na periferia. Gente pobre, batalhadora, que está pagando o seu celular em 20 vezes, vai ter o aparelho levado no ponto de ônibus a caminho do trabalho. E os roubos têm uma taxa de esclarecimento muito baixa, por isso precisamos melhorar a capacidade de investigação das polícias no Brasil.
E quanto aos homicídios?
O homicídio choca muito, mas é um crime que se concentra nas regiões periféricas e pobres. Por isso pauta menos o debate público e acaba também afetando menos a percepção de segurança. Claro que isso não vale para os moradores destas zonas, que sentem muito medo.
Os homicídios aumentaram ou baixaram nos últimos anos?
Entre 2011 e 2012, os homicídios no país, de uma forma geral, cresceram, segundo o Anuário Estatístico do Fórum Brasileiro de Segurança Publica. Mas não de forma homogênea. O Acre aumentou 24%, por exemplo, enquanto Rio de Janeiro e Pernambuco conseguiram diminuir a taxa. Além disso, ao longo da década de 2000 houve uma queda dos homicídios. No final dos anos 90, o crime era concentrado em regiões metropolitanas como São Paulo, Rio de Janeiro, Pernambuco, Minas Gerais. Nos anos 2000, esses estados reduziram a taxa. Houve então uma mudança e, hoje, estados do Norte e do Nordeste vivem um aumento importante dos homicídios.
Porque essa mudança aconteceu?
Não há somente uma explicação. Várias medidas são importantes. A primeira delas é reduzir o número de armas em circulação. Estados que tiveram políticas de controle mais eficientes, com campanhas de entrega de armas, apreensões e segurança de estoque tiveram redução dos homicídios. Outro fator importante é a investigação. No Brasil a taxa de esclarecimento de homicídios é baixa, de 8%. Na Espanha, é de cerca de 80%. Uma vez, em Nova York, perguntei a um policial quantos inquéritos eram investigados. Ele sequer entendeu a pergunta. Para ele não havia a possibilidade de não investigar um crime registrado.
E as alterações no código penal, são boas respostas aos crimes?
Sempre que temos um debate no Congresso sobre violência e segurança pública é sempre dentro de uma lógica reativa. Acontece um crime bárbaro, todo mundo fica com medo, e tentam endurecer a pena. O maior exemplo disso agora é a tipificação do crime de terrorismo. Claro, aconteceu um evento muito sério com a morte do cinegrafista. Mas não dá para simplesmente criar um crime novo como resposta ao que aconteceu. O problema é muito anterior.
Este é um comportamento típico no Brasil?
Sim, é uma reação comum. E só gera mais medo. Contribuí pouco para um debate racional e qualificado. Não é que não se possa debater a pena, mas, quando se discute segurança pública, há muitas questões mais importantes e efetivas do que a penal. O nosso arcabouço jurídico já é enorme, o problema é que não temos uma estrutura organizada para colocá-lo em prática. Como a pena baixa pode ser a causa da impunidade se sequer conseguimos chegar aos atores porque os crimes não são esclarecidos?
Mas estas medidas encontram eco na sociedade...
É um discurso que vende, que emplaca muito, porque o único repertório de resposta que as pessoas e o poder público têm é mais punição, mais prisão. Um congressista propõe uma lei e ganha a opinião pública, porque as pessoas tampouco têm claras as origens dos problemas. É o que chamamos de populismo penal. Se discute pouco a gestão e a questão penal aparece como solução milagrosa. Só que, nos últimos 20 anos, centenas de novos crimes foram criados [na legislação]. Se isso resolvesse, nós não teríamos estes problemas sérios de segurança pública.