Persépolis
26 de novembro de 2007Para boa parte da mídia internacional, Marjane Satrapi acaba de inaugurar um gênero cinematográfico: a "autobiografia animada". A artista gráfica transformou sua própria história em quatro volumes de HQs, agora adaptados por ela e por Vincent Paronnaud para as telas do cinema num filme de animação. Uma obra documental, porém, Persépolis não é.
"O filme não é um depoimento autobiográfico, nem psicológico, nem tampouco político. Não se trata de um documentário. A realidade, em si, não me interessa, mas sim as impressões que ela deixa. É daí que surge minha história", diz Satrapi em entrevista ao semanário alemão Die Zeit.
"Punk is not dead"
Persépolis narra a história do Irã nas décadas de 1970-80 a partir de uma perspectiva estritamente pessoal. A protagonista (que tem vários anos de sua vida retratados em flash back no filme e cujo nome é o mesmo da autora) é filha de pais ricos, liberais e ocidentalizados.
Ainda criança, ouve com atenção os comentários a respeito de um tio comunista, que é torturado em uma das prisões do regime do xá. Corajosa, a jovem Marjane enfrenta os novos tempos com rebeldia, ao carregar nas costas os dizeres Punk is not dead (O punk não está morto), mesmo diante da obrigatoriedade de usar o véu muçulmano.
Guardiães da revolução e revolucionários de fachada
Com o início da ditadura religiosa que se segue, a situação se agrava ainda mais, e o tio acaba sendo assassinado pelos "Guardiães da Revolução". Marjane tem 14 anos quando começa a guerra entre Irã e Iraque. Por receio de que aconteça algo à filha, seus pais a enviam para um internato na Áustria, onde a adolescente se vê confrontada com uma série de novos conflitos: a solidão e o sentimento de estar à parte de uma sociedade.
"No exílio austríaco, para Satrapi 'o lugar mais exótico no filme', a menina de 14 anos não encontra de forma alguma os idílios ocidentais do pensamento livre, mas sim as regras sem sentido e rígidas de um internato católico feminino, uma verborragia política perfumada e revoluções de fachada, além de punks estúpidos e esnobes e seu primeiro grande amor", descreve o Der Spiegel. Depois dessa experiência, ela resolve retornar ao Irã, onde se casa, se separa e mais tarde resolve voltar à Europa, mudando-se para Paris.
Traços expressionistas e neo-realistas
Para o longa de animação, Satrapi e Paronnaud optaram pelo contraste forte entre o preto e o branco (apenas poucas cenas, no início e fim do filme, são em cor), texturas marcantes e traços definidos. O traço de Satrapi nos quadrinhos, há de se lembrar, é com freqüência comparado ao de Art Spiegelman, cujo trabalho a artista declara admirar.
"Persépolis é um filme nitidamente de arte, que lida com elegância e exatidão com as simplificações necessárias do gênero. O traço de Satrapi tira a profundidade dos espaços, acentua o bidimensional e, ao mesmo tempo, dá às personagens uma presença marcante que as leva ao primeiro plano", observa o diário berlinense taz.
Para o filme, os diretores buscaram inspiração, entre outros, no expressionismo alemão e no neo-realismo italiano, comenta o Der Spiegel: "A mímica excêntrica e os cenários deformados, como num pesadelo, do filme expressionista alemão foram influências tão importantes quanto o neo-realismo italiano, que narra o destino de suas personagens alternando dramaticamente closes individuais e planos gerais que espelham o contexto social".
Dubladoras escolhidas a dedo
O sucesso de Persépolis na França foi tamanho que o filme, além de ter recebido o Prêmio Especial do Júri no Festival de Cannes, foi indicado para a seleção prévia a ser enviada para a nomeação ao Oscar.
Em francês, a animação foi dublada por ninguém menos que Chiara Mastroianni e sua mãe, Catherine Deneuve. Para a versão alemã, as dubladoras foram, da mesma forma, escolhidas a dedo, com a atriz alemã de origem iraniana Jasmin Tabatabai dando voz a Marjane, e Nadja Tiller a sua mãe.
Humor que subverte
Ao receber o prêmio em Cannes, Satrapi fez questão de ressaltar que seu filme não se posiciona "contra o Irã", como os governantes do país tentaram fazer crer quando do lançamento do filme. "Minha tarefa é fazer rir, pois rir pode ser uma arma bastante subversiva", disse a cineasta.
O grande mérito de Persépolis, afirma a quase unanimidade da crítica européia, é conseguir fazer a transposição do particular para o universal, colocando a questão da busca da identidade, tão pertinente na atualidade, como conflito central da obra.
Herança milenar
Também o título do filme não é uma escolha aleatória: Persépolis foi o nome dado pelos gregos à então monumental capital do Império Persa, cujas ruínas são hoje patrimônio histórico da humanidade.
Elas simbolizam, acredita Satrapi, um Irã que vai muito além do véu muçulmano, dos mulás e dos "guardiães da moral" que a mídia ocidental estampa com freqüência. Uma tentativa bem-sucedida de, a partir de uma história pessoal, lembrar que a população de um país não deve ser confundida com seus líderes.