"Polarização extrema mata a democracia"
22 de janeiro de 2019Uma democracia liberal esvaziada pode ser o futuro do governo Jair Bolsonaro, afirma o cientista político Steven Levitsky, autor do best-seller Como as democracias morrem, em entrevista à DW Brasil.
Professor de ciência política na Universidade de Harvard, Levitsky escreveu o livro em parceria com o colega Daniel Ziblatt. A obra tem como ponto de partida a vitória de Donald Trump nas eleições americanas de 2016 para mostrar como líderes populistas, assumindo o papel de "outsiders", estão alcançando o poder em diversos países.
No contexto brasileiro, Levitsky afirma que a democracia liberal não parece estar funcionando para muitas pessoas e que, em sua opinião, há uma boa chance de que Bolsonaro torne o governo menos liberal.
"Os direitos civis, políticos e humanos básicos de um grande número de brasileiros – de afro-brasileiros a indígenas, de gays e lésbicas a ativistas de direitos humanos e esquerdistas – poderão ser restringidos ou subvertidos. Se isso se tornar sistemático, não poderíamos mais chamar o Brasil de uma democracia liberal", afirma.
Além disso, a polarização política ameaça a democracia brasileira. "Quando cada lado vê seus rivais políticos como inimigos, há disposição para se fazer qualquer coisa – até mesmo violando as regras da democracia – para impedir que eles ganhem. Já estamos vendo sinais disso no Brasil."
DW Brasil: No livro Como as democracias morrem, há uma análise de como os partidos políticos e os políticos – os chamados guardiões da democracia – podem falhar em meio à busca por objetivos pessoais. A eleição de Jair Bolsonaro, assim como a de Donald Trump, reflete isso?
Steven Levitsky: Sim e não. O sistema político do Brasil é mais aberto que o dos EUA, em que os partidos são mais fracos. Ao contrário de Trump, que precisava do apoio dos líderes republicanos para concorrer, Bolsonaro concorreu com seu próprio partido. No caso do Brasil, acho que a polarização e o medo da esquerda importam tanto, se não mais, que a ambição pessoal. Muitas elites políticas e econômicas simplesmente pensaram que o PT era pior [que Bolsonaro], ou pelo menos igualmente ruim.
Que responsabilidade políticos e partidos têm e em que falharam quando a democracia é questionada pela sociedade e líderes autoritários emergem?
Depende muito do país. Com muita frequência, [falharam quanto ao] o desempenho econômico – esse era certamente o caso no Brasil ou na Venezuela antes de Hugo Chávez. Mas nem sempre é isso. A economia dos EUA não estava em tão mau estado em 2016. Podem ser outras áreas políticas, como crime ou corrupção. Mas, de forma mais geral, há uma percepção de que os políticos não estão ouvindo as pessoas, de que elas não representam eleitores e de que estão mais interessados nos problemas das elites do que nas pessoas em geral.
No livro, há também a ideia de que tolerância mútua e reserva institucional são fatores que salvaguardam as democracias, além das leis escritas na Constituição. O que esses dois termos significam?
Tolerância mútua significa aceitar o rival como um candidato legítimo, e não um inimigo ou uma ameaça existencial. Reserva institucional significa ter moderação na implantação de prerrogativas institucionais – não usando a letra da lei de maneiras que subvertam o espírito dela. Democracias não podem funcionar bem sem essas normas.
Quando rivais são vistos como inimigos (comunistas, fascistas, criminosos, traidores, etc.), há uma disposição para usar "todos os meios necessários" para mantê-los fora do poder. Isso significa abandonar essa moderação e engajar-se, pelo menos, no "jogo duro" constitucional – como temos visto nos últimos anos no Brasil – e, às vezes, no autoritarismo aberto – como se viu no Brasil em 1964 e no Chile em 1973.
Nas últimas eleições brasileiras, adversários políticos se tornaram inimigos. Quais são os riscos para a democracia quando há esse tipo de polarização?
Há riscos terríveis. Polarização extrema mata a democracia. Pense na Espanha e na Alemanha na década de 1930; no Brasil no início dos anos 1960; no Chile em 1973; na Venezuela e na Turquia no início dos anos 2000. Quando cada lado vê seus rivais políticos como inimigos, há disposição para se fazer qualquer coisa – até mesmo violando as regras da democracia – para impedir que eles ganhem. Já estamos vendo sinais disso no Brasil. Vimos sinais na campanha de 2014, no impeachment de 2016, no fato de a elite ter amplamente abraçado a exclusão de Lula das eleições – algo que pode ter sido merecido, mas ainda é realmente problemático para a democracia –; e vimos isso no apoio de muitos políticos a um candidato abertamente autoritário como Bolsonaro. Os riscos são muito reais.
Durante as eleições, o presidenciável do PT, Fernando Haddad, tentou criar uma frente democrática. Você vê a necessidade dessa frente após a eleição de Bolsonaro?
Sim, há uma necessidade de tal frente, mas acho que ela é improvável no momento – pela mesma razão que não se formou em 2018: polarização. O PT e a centro-direita desprezam e temem um ao outro agora. Eventualmente, se as coisas ficarem ruins o suficiente, eles podem cooperar, podem olhar para os socialistas e democratas chilenos nos anos 80 como modelo, mas agora eles não estão próximos o suficiente.
Para o Brasil, a eleição de Bolsonaro pode trazer um esvaziamento democrático?
Nós ainda não sabemos o que essa vitória significa. Não havia um apoio esmagador a Bolsonaro, com apenas cerca de um terço dos brasileiros realmente entusiastas do seu projeto. Muitos outros eram simplesmente anti-PT ou estavam irritados com o establishment em geral. Então, depende do que Bolsonaro fizer. A democracia liberal do Brasil estava doente – por uma razão compreensível: o país teve uma de suas piores recessões ao mesmo tempo que foi descoberto o maior escândalo de corrupção na história do mundo democrático. A isso se somou uma grave crise de segurança. Os eleitores estavam compreensivelmente irritados e queriam uma mudança significativa. O Brasil foi governado pela centro-esquerda por 15 anos, então Haddad representava o infeliz status quo. E, claro, [Geraldo] Alckmin também representou o status quo para a maioria dos eleitores.
Então, a democracia liberal não parece estar funcionando para muitas pessoas. Ela vai se esvaziar agora? Nós ainda não sabemos. Eu acho, infelizmente, que há uma boa chance de que ele se torne menos liberal. Os direitos civis, políticos e humanos básicos de um grande número de brasileiros – de afro-brasileiros a indígenas, de gays e lésbicas a ativistas de direitos humanos e esquerdistas – poderão ser restritos ou subvertidos. Se isso se tornar sistemático, não poderíamos mais chamar o Brasil de uma democracia liberal.
O surgimento de líderes populistas em todo o mundo, como Bolsonaro, Trump, Rodrigo Duterte, Viktor Orbán e outros, sugere o fim do modelo democrático? No livro Como a democracia chega ao fim, David Runciman diz que a democracia ocidental está em declínio e que seu auge já passou.
É cedo demais para dizer isso. Tudo depende da alternativa. Se um modelo alternativo viável e amplamente legítimo emergir, então sim, a democracia liberal poderia estar em declínio. Mas até hoje isso não aconteceu. Até hoje estamos no mundo de Winston Churchill, segundo o qual a democracia é a pior forma de governo, salvo todas as demais experimentadas de tempos em tempos.
Pense na América Latina. As democracias entram em apuros o tempo todo: o Peru na década de 1990, a Venezuela, a Nicarágua e o Equador nos anos 2000. Mas as alternativas – por exemplo, o chavismo – não surgiram como um modelo alternativo viável. Já perderam o brilho e se mostraram bastante frágeis. No Equador, até entrou em colapso. E o modelo proposto por oponentes e sucessores? Ainda é a democracia liberal. Então, não está claro se a democracia está chegando ao fim. Isso é especulação.
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