'Michael'
28 de janeiro de 2012Para a mídia foi um grande evento. Milhares de jornalistas de todo o mundo se esforçaram em cobrir o sequestro de Natascha Kampusch ou a história incestuosa de Joseph Fritzl na pequena cidade austríaca de Amstetten.
Histórias como essas não têm explicação. Assim como não há explicação sobre como, num quarto construído em um porão, uma jovem ou outras pessoas puderam passar anos aprisionadas, sofrendo abusos, sem que vizinhos, autoridades e conhecidos notassem algo de errado.
O austríaco Markus Schleinzer é na verdade diretor de elenco e trabalhou em filmes como A fita branca e o vencedor do Oscar Os falsários. Schleinzer ficou tão tocado com os acontecimentos envolvendo Kampusch e Fritzl que resolveu usar a história para a sua estreia na direção.
Michael é o titulo do filme, que no ano passado foi indicado ao Prêmio do Cinema Europeu e recentemente ganhou o Prêmio Max Ophüls de melhor filme, em Saarbrücken, como também de melhor ator, para Michael Fuith. O filme estreou nesta semana nos cinemas alemães. A Deutsche Welle conversou com o diretor e o ator principal de Michael.
Deutsche Welle: Você foi diretor de elenco de mais de 60 filmes e acredito que é natural você ter a vontade de fazer seu próprio filme, mas por que você escolheu um tema tão difícil e polêmico para sua estreia na direção?
Markus Schleinzer: No fim de 2008, comecei a pensar seriamente em fazer o meu primeiro filme e me perguntei quais eram os temas que realmente me interessavam. Então desenvolvi três histórias diferentes e apresentei a alguns amigos, e a que provocou as mais calorosas discussões foi a de Michael.
Desde então não tive mais dúvidas, além de esse ser um tema onipresente. 2008 foi o ano em que a menina Madeleine McCann desapareceu em Portugal, Na Áustria as pessoas começaram a perder o interesse pelo caso Natascha Kampusch, porque ela não transformou seu sequestrador Fritzl no monstro que a mídia havia descrito.
Eu fiquei surpreso como ninguém do meio mais intelectualizado teve o interesse em mostrar uma visão diferente do que estava sendo dito nas ruas e na imprensa. No entanto, devo confessar que eu era um desses voyeurs da sociedade e acompanhava de perto essas horríveis notícias. Então comecei a me perguntar o que mais poderia ser dito sobre o assunto.
Foi difícil captar recursos para um filme com uma ideia tão polêmica?
A Áustria não tem uma grande produção de cinema. São poucos filmes para muitos cineastas. Sendo assim é bom sempre ser cuidadoso e eu sempre me perguntava se deveria fazer esse filme. Nunca ninguém me perguntou isso. Fui questionado se poderia fazer esse filme e a resposta sempre foi muito clara. Fiquei surpreso como foi fácil captar recursos para fazer Michael.
Você declarou que Natascha Kampusch era apenas uma das muitas crianças desaparecidas – na Alemanha existem aproximadamente 1.800 crianças desaparecidas – e que tal fenômeno foi decisivo para seu filme. Como foi pesquisar o perfil de tal criminoso?
Eu me proibi de pesquisar. Naturalmente recebi muita informação vinda da mídia, mas não queria cair na armadilha de encontrar algo interessante ou emocionante e usar isso de uma maneira "artística" ou abusiva. O sofrimento real pertence às verdadeiras vítimas e somente elas podem decidir como lidar com o problema.
Talvez o que seja mais assustador é que eu tenha criado um personagem que nada mais quer do que a maioria de nós: um relacionamento, ser feliz e vivenciar o amor. Mesmo quando se tem essa tendência. Mas como é um pedófilo? Quando ele consegue se reconhecer como tal? Provavelmente nos últimos anos da adolescência quando percebe que as pessoas geralmente se atraem por pessoas da mesma idade e ele não. Então vem a pergunta assustadora da família: quando você vai apresentar sua namorada? Então vêm os longos anos de solidão. Quando ele finalmente tem sua própria casa, tendências e coincidências se unem em uma combinação infeliz.
No entanto nem todo pedófilo é um criminoso. Pedofilia é apenas uma tendência. Existem pessoas que não vivem essas tendência, elas procuram ajuda ou falam abertamente a respeito. Tornar-se criminoso é colocar essas tendências em prática, organizando sua vida para tal, o que inclui levar um dia a dia "normal" e não há nada melhor para esconder um crime do que a normalidade.
Os planos do filme são muito fixos. Foi uma escolha feita pela temática ou você foi influenciado pela Escola de Viena, mais especificamente pelos filmes de Ulrich Seidl?
Essa é a impressão de muitas pessoas, mas dois terços do filme foram feitos com a câmera na mão. Acho que essa rigidez está relacionada com a narrativa lenta. Tivemos que cortar poucas cenas do filme. Eu venho da área de elenco. Pessoas e atores são meu trabalho e minha paixão. Não há nada que eu ache mais bonito do que as pessoas poderem ver como elas desenvolvem algo dentro de um período de tempo com o seu próprio talento e não por efeitos de câmera ou por uma trilha sonora dramática. Para mim foi sempre muito importante transmitir tranquilidade e preservar a distância.
Como foi a repercussão do filme na Áustria, onde ele estreou em setembro?
Muito boa, estou muito satisfeito. Acredito que, na Áustria, esse assunto está sempre nas páginas dos jornais. É quase bizarro o fato de toda vez que estava presente em algum evento relacionado ao filme um escândalo acontecia. Casos de abusos dentro da Igreja Católica e o caso de um abrigo de crianças em Viena que nos anos 1960 funcionava como um bordel. Esse caso ainda está sendo investigado. Fico até um pouco incomodado, porque esses escândalos são como uma máquina de publicidade para meu filme.
Deutsche Welle: Normalmente, há uma grande disputa entre atores para que possam interpretar personagens únicos e extraordinários. Como foi no caso deste filme?
Michael Fuith: No primeiro momento não queria interpretar esse personagem. Enquanto eu lia o roteiro, percebi que essa era a maneira adequada e inteligente de abordar o assunto. Particularmente me agradou o fato de o filme não apostar em efeitos, não explorando as vítimas, por assim dizer. Durante a minha pesquisa, o silêncio geral das pessoas me chamou atenção. O silêncio das vitimas, dos agressores, das famílias.
Os psicólogos e assistentes sociais têm grande dificuldade em ajudar, pois ninguém diz nada. Isso cria um tipo de proteção para os agressores. Isso me incomodou muito. E me fez pensar que deveria dar uma cara a tudo isso para que as pessoas pudessem analisar o assunto não apenas pela perspectiva da imprensa sensacionalista, podendo assim desenvolver uma consciência para lidar com o tema. Assim, mesmo um pouco relutante, decidi que queria fazer esse filme.
Entrevista: Bernd Sobolla (mas)
Revisão: Carlos Albuquerque