Vocês conseguem imaginar um país no qual uma professora é removida da escola pública por "insistir em ensinar a temática indígena"? E se este país tiver os indígenas como povos nativos, cujas histórias foram silenciadas por séculos? A situação parece ainda mais esdrúxula, não?
Pois bem, esse país é o Brasil.
Em pleno 2021, Márcia Nunes Maciel, doutora em História Social pela USP, indígena da etnia Mura, foi removida da escola em que lecionava sob a alegação de insistir na temática indígena. Uma decisão que foi tomada pelo alto escalão do sistema educacional de Porto Velho, capital de Rondônia – um estado da Região Norte habitado por dezenas de populações indígenas.
Essa situação revela uma série de questões e violências que marcam a longa trajetória do Brasil, e também a nossa conjuntura mais recente. Uma das mais latentes é a decisão de representantes do Estado brasileiro – na esfera estadual – de não reconhecer a importância e a constância da presença indígena no Brasil. Uma ação tão antiga quanto a própria construção oficial da ideia de nação brasileira.
Mas não é exatamente sobre o genocídio e o epistemicídio indígena que pretendo falar hoje.
É sobre o Brasil ser um país que não escuta seus professores.
Todo o mês de outubro, mais especificamente no dia 15, é comemorado o dia do professor e da professora. Uma data de celebração cuja história está atrelada à figura de Antonieta de Barros, uma mulher negra, professora em Santa Catarina, que além de lutar pela ampliação do sistema de ensino no Brasil, participou da Constituinte em 1935, sendo responsável pelos capítulos da Educação, Cultura e Funcionalismo.
No 15 de outubro, é comum que professores e professoras sejam lembrados, presenteados, comemorados. Nada mais justo para os profissionais que são os responsáveis diretos pela formação dos cidadãos brasileiros.
Na época digital em que vivemos, essa celebração também se faz por meio de frases e memes que homenageiam os ditos mestres. Dentre os muitos que vi e recebi, um me chamou atenção. Uma frase – cuja autoria é atribuída a Paulo Freire –, pontua o fato de muitos pais festejarem os professores de seus filhos, mas de não desejarem que seus filhos sejam, eles próprios, professores.
Comemoramos os professores, mas não queremos esse futuro para nossos filhos. E por quê?
Porque ser professor no Brasil é resistir todos os dias.
Educação sucateada
Na esfera do ensino público, vivemos um longo e bem acabado projeto de sucateamento. Salários irrisórios, que obrigam que professores e professoras tenham triplas jornadas de trabalho; salas com mais de 40 alunos; escolas que muitas vezes não tem nenhum tipo de infra-estrutura – o que pode significar a falta de materiais didáticos, falta de carteiras, até a falta de água; estudantes que sofrem diferentes tipos de violência, como a fome; processos avaliativos que pouco avaliam, permitindo que o analfabetismo funcional seja uma realidade dentre os estudantes.
Na esfera do ensino privado, as condições de trabalho são igualmente precárias. Na maior parte dos casos, os salários são igualmente baixos, as salas igualmente lotadas, e o tempo de aprendizado também não é respeitado. Nas escolas de elite, nas quais os professores recebem salários que podem ser considerados dignos, o volume de trabalho é absurdo, fazendo com que o pagamento do descanso semanal seja uma piada.
Além disso, é importante lembrar a pouca ou nenhuma autonomia dos professores em decidirem quais, quando e como os conteúdos serão trabalhados, num massacre anual que é sempre justificado pelo Enem, mas cujas raízes deitam no fato de que a educação se transformou numa mercadoria, e que muitas vezes os professores são tidos como meros reprodutores do saber que eles constroem diariamente.
E, se não bastassem todos esses aspectos, que são atravessados pelas questões de classe, raça e gênero que ordenam no Brasil, recentemente professores e professoras têm que enfrentar o processo de deslegitimação do conhecimento e da ciência, propagado pelo movimento das fake news.
Mais que celebrar, devemos ouvi-los
O que vivemos hoje no Brasil é em grande parte resultado desse longo e bem acabado desmonte da educação. Da desvalorização total dos professores e professoras, que muitas vezes se expõem a situações de perigo e violência para exercerem suas profissões.
Por isso, mais do que celebrar e homenagear, o Brasil precisa escutar seus professores e professoras, para de fato aprender com eles. E não nos enganemos: não há mudança efetiva na educação que não passe pela transformação das condições de trabalho dos professores.
É curioso que, mesmo nesse contexto de nenhuma escuta e de deslegitimação sistemática, professores e professoras continuam resistindo e fazendo da educação uma ferramenta de transformação. E por alguma força quase mágica – mas que provavelmente pode ser explicada por experiências positivas no chão da escola –, ser professor ainda é o projeto de futuro (e de felicidade) de muitos brasileiros e brasileiras.
Sigamos.
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Mestre e doutora em História Social pela USP, Ynaê Lopes dos Santos é professora de História das Américas na UFF. É autora dos livros Além da Senzala. Arranjos Escravos de Moradia no Rio de Janeiro (Hucitec 2010), História da África e do Brasil Afrodescendente (Pallas, 2017) e Juliano Moreira: médico negro na fundação da psiquiatria do Brasil (EDUFF, 2020), e também responsável pelo perfil do Instagram @nossos_passos_vem_de_longe.
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