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"Norte-coreanos não entendem conceito de privacidade"

Esther Felden (mp)17 de agosto de 2015

O estudante britânico Alessandro Ford conta suas experiências após passar um semestre na Coreia do Norte. Ele é considerado o primeiro estudante ocidental a fazer intercâmbio em uma universidade de Pyongyang.

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Foto: privat

De agosto a dezembro do ano passado, Alessandro Ford estudou na Universidade Kim Il-sung, na capital da Coreia do Norte. O jovem britânico de 18 anos é considerado o primeiro estudante ocidental a frequentar uma universidade no país.

De volta à Europa, Ford reflete sobre o seu período no exterior. Em entrevista à DW, ele fala sobre seu cotidiano no campus em Pyongyang, os amigos que fez e o fato de não ter privacidade.

DW: Muitos jovens passam um semestre no exterior. Mas eles vão para lugares como Estados Unidos, Austrália, talvez China – mas não Coreia do Norte. Por que você decidiu ir para uma universidade lá?

Alessandro Ford: Eu visitei a Coreia do Norte com meu pai em 2011. Ele é especialista em assuntos do país. Para ele, foi uma viagem de negócios, mas para mim foi um aventura em uma terra exótica e inexplorada. A viagem em si foi chata: longas reuniões e voltas em carros abafados e úmidos. Mas ocasionalmente emergia uma empolgação das profundezas deste tédio, uma empolgação que me lembrava o quanto exótico, estranho e diferente era aquele país. Quase dois anos depois, no início de 2013, eu comecei a planejar um ano sabático. Eu não conseguia decidir para onde ir ou o que fazer. Eu sabia que teria que ser algo grande, ousado. Entre outras coisas, eu pensei em mochilar no Vietnam, ser voluntário na Colômbia ou viajar pela Europa. Mas nada parecia suficientemente desafiante.

Meu pai, então, começou a ficar impaciente e cansado da minha indecisão. "Se você não tomar uma decisão, eu vou mandar você para a Coreia do Norte", ele disse. Foi uma piada – um empurrão para eu me decidir. Mas acabou sendo o início dos meses mais memoráveis da minha vida. Eu perguntei para o meu pai se ele poderia mesmo me mandar para lá por um longo período. Ele ficou surpreso, mas concordou em, pelo menos, ver se seria possível.

Quão difícil foi concretizar esse plano?

Alessandro Ford Skyline Pjöngjang Nordkorea
Ford fez excursões ao interior do paísFoto: privat

Os norte-coreanos levaram muitos meses para concordar, mas acabaram aceitando. A única condição era que eu aprendesse o básico do coreano antes de ir, o que eu fiz. Eles queriam promover o intercâmbio de estudantes entre universidades norte-coreanas e ocidentais, incluindo a Universidade de Cambridge. E precisavam que um primeiro estudante os visitasse para sedimentar um caminho de futuros intercâmbios com universidades europeias. Um estudante britânico, que já tinha alguma experiência e conhecimento sobre o país foi perfeito.

Como era a vida no campus?

Era muito diferente do que imaginava. A cultura era diferente, as pessoas se comportavam de forma diferente e até a atmosfera era diferente. Mas, com o tempo, você simplesmente acaba se acostumando. Nós jogávamos futebol, basquete, cartas, bebíamos cerveja juntos e assistíamos a filmes. Depois de algum tempo, a vida entra na rotina, como acontece em qualquer outro lugar. Um aspecto que eu realmente demorei para me acostumar foi o fato de os norte-coreanos serem workaholics por natureza. Acompanhá-los no volume de trabalho na escola e nos esportes era praticamente impossível.

O choque cultural foi muito grande?

O choque cultural foi um enorme abismo que eu levei quase dois meses tentando transpor. Todos tomavam banho juntos, relaxavam na sauna juntos, comiam juntos, praticavam esportes juntos, faziam tudo juntos. A privacidade é algo que eles não entendem muito bem. Existia também o lado "político" da cultura. Todas as manhãs, os estudantes reverenciavam a estátua do "grande líder", uma van do governo passava pelo nosso dormitório tocando músicas sobre as glórias do socialismo, e havia fotos dos grandes líderes em todos os quartos. Foi bem difícil se habituar a isso, mas eu acabei me acostumando.

Até que ponto você conseguia manter contato com a sua família na Europa?

Eu não tinha acesso à internet, ninguém tinha. Eu tinha meu telefone celular, com o qual podia fazer ligações para fora do país. Eu podia telefonar o quanto quisesse e, até onde eu sei, minhas ligações telefônicas não eram nenhum pouco reguladas. Mas eu ligava somente uma vez por semana. Mas era uma questão de custo, não de proibição – o minuto da ligação internacional de Pyongyang custa 2,20 dólares. Se eu quisesse, podia ligar todo dia.

Do que você mais sentia falta quando estava na Coreia do Norte?

Alessandro Ford Inliner fahren Pjöngjang Nordkorea Austauschstudent
"Passei com essas pessoas quase todos os momentos em que estava acordado"Foto: privat

Conceitualmente, eu senti falta do meu individualismo, de poder andar por Bruxelas à noite sem ninguém me olhando ou caminhando comigo. Eu senti falta de poder ir aonde eu quisesse, quando eu quisesse, sem outra pessoa. Materialmente, eu senti falta da comida ocidental. Durante todos os quatro meses, nós comemos exclusivamente comida coreana ou chinesa. Eu, especialmente, senti falta de pasta de amendoim, porque sou praticamente viciado! Os norte-coreanos ficaram cansados de ouvir como eles precisavam importar pasta de amendoim, pois é a melhor coisa que existe.

Além da sua vida no campus, você chegou a ver como é o cotidiano em Pyongyang e em outras cidades?

Eu testemunhei a vida cotidiana frequentemente quando ia a pé para a universidade ou caminhava por Pyongyang. Crianças pequenas indo para a escola, homens com cara de cansados indo para o trabalho, pessoas passando seus dias como sempre fazem. O cotidiano não foi algo que me impressionou muito, porque era bem banal. Foi bom ver algo além de soldados marchando e passeios turísticos guiados, mas não era nada especial.

Eu fiz excursões pelas montanhas de Myohyang e de Kumgang com outros estudantes estrangeiros. Essas viagens nos levaram para lugares muito bonitos, mas os passeios de ônibus também eram uma oportunidade de ver o interior do país – que é muito mais pobre do que a capital, relativamente rica e sofisticada. As estradas estavam degradadas e os prédios, abandonados. Eu não vi ninguém passando fome, mas é claro que isso não significa que a fome não existe.

Como você lidou com o sentimento de ser constantemente monitorado?

No início, muito mal – eu me sentia sufocado e emocionalmente claustrofóbico. Nunca podia ter um momento sozinho. Foi muito difícil me adaptar à comunidade abrangente que era o dormitório estrangeiro. Era ainda pior ter que pedir para dar uma volta. No fim, me adaptei a isso também, e se tornou normal caminhar com meus amigos. Eu não gostava de ser monitorado, mas depois de um tempo não parecia mais tão restrito assim.

Como era a interação com os seus colegas norte-coreanos?

As pessoas que eu conheci se encaixavam em dois grupos diferentes: aqueles que eram ávidos por conhecimento e aqueles que não tinham o menor interesse em nada fora da Coreia do Norte. A maioria das pessoas pertencia ao primeiro grupo e queria saber o máximo possível sobre a vida fora do país – na Europa e no Reino Unido.

Os outros era uma minoria, eram pessoas muito educadas, mas simplesmente não se importavam com a vida fora da Coreia do Norte. Eles estavam felizes nas suas bolhas e não desejavam pensar na vida fora dela, nem por um instante.

Vocês chegaram a conversar sobre política ou isso era tabu?

Alessandro Ford Austauschstudent Pjöngjang Nordkorea Stundenplan
Tabela com as tarefas da rotina diáriaFoto: privat

Nós nunca discutimos no sentido de qual teoria política era a melhor, mas nós discutimos relações internacionais – como a China apoia a Coreia do Norte e os Estados Unidos apoiam a Coreia do Sul, por exemplo. Mas, em geral, nós tendíamos a evitar política.

Eu lembro quando um estudante norte-coreano me mostrou o dormitório e me levou até as duas máquinas de lavar, mas disse que eu poderia usar apenas uma delas. Quando perguntei por que, ele explicou que a outra pertencia aos estudantes chineses, que a haviam comprado.

Vendo uma chance de testar os limites, eu fiz uma piada sobre como eu achava que tinha chegado ao paraíso dos trabalhadores coreanos, mas, em vez disso, demônios estrangeiros estavam se infiltrando no paraíso socialista com seus modos capitalistas vis. Ele ficou imediatamente quieto e tenso. Eu continuei: como esses estudantes chineses podem ter sua própria máquina de lavar? Isso é um absurdo burguês, um Cavalo de Troia instalado para poluir a pureza do socialismo coreano. Neste momento, o estudante ficou bastante sério e disse: "pare de fazer piadas sobre o socialismo". Então nós podíamos falar sobre socialismo e capitalismo, mas colocamos limites nas críticas.

Muitos se referem à Coreia do Norte como um "reino eremita". Ainda é assim? O quanto seus colegas sabem sobre o exterior?

A Coreia do Norte está sofrendo uma mudança cultural dramática – com música chinesa e, atrevo-me a dizer, sul-coreana. Há uma quantidade imensa de filmes e programas de TV que transpõem a fronteira. Muitos dos meus amigos norte-coreanos têm laptops e jogos de computador chineses que eles jogam por horas a fio.

Música chinesa é ouvida ocasionalmente por alguns estudantes, e filmes chineses estão à venda em bancas nas ruas. Filmes russos com legendas em coreano podem ser encontrados na maioria das lojas e bancas, assim como a música russa. Dizem que a elite de Pyongyang também vê filmes e programas de TV sul-coreanos a portas fechadas.

Nós ficamos sabendo das laranjas espanholas que estavam apodrecendo, que o Vietnam está recebendo muitos turistas neste ano e do clima particularmente quente em algumas partes da África – mas nada de muito relevante. As informações importantes a que tivemos acesso eram infundadas ou distorcidas, como a CIA criando o ebola e perdendo o controle sobre o vírus no leste da África, ou as agressões europeias e americanas na Crimeia contra os pacíficos russos.

Nós ouvimos falar sobre as mortes de jovens negros nos Estados Unidos por policiais brancos, mas, como você pode imaginar, essa notícia era apresentada como uma evidência clara de como o governo americano trata as minorias e a sua inadequação como Estado.

Meus professores eram o símbolo da carência de conhecimento sobre o exterior. Um professor estava explicando como falar as quatro estações em coreano e parou para perguntar se nós também temos quatro estações no Ocidente. Outro professor passou cinco minutos me explicando o que era uma banana, porque ele pensava que eu nunca tinha visto uma. Essas devem parecer coisas bem triviais, mas era um indicativo da falta de informação básica generalizada sobre o exterior.

Você realmente fez amigos ou diria que isso não foi possível devido às circunstâncias?

Eu fiz amigos de verdade. E espero vê-los de novo um dia. Independente das nossas diferenças e do meu incômodo com a falta de tempo sozinho – o que interessa é que eu passei com estas pessoas quase todos os momentos em que estava acordado. Pessoas que não me viam como a personificação da política de um país. Eles me viam como eu os vejo. Como indivíduos diferentes de mim, mas que tinham as mesmas virtudes e vícios básicos, os mesmos medos e sonhos básicos, as mesmas emoções básicas, como você e eu.

Eles não acordavam pensando "morte à América" ou "vida longa ao paraíso dos trabalhadores coreanos", como nós também não acordamos pensando "tenho que fazer dinheiro para financiar o meu estilo de vida capitalista" ou "avante o imperialismo". Nós não somos manifestações do capitalismo ou do socialismo, ou do Ocidente e do Oriente, nós éramos apenas jovens estudantes da mesma universidade, vivendo o mesmo estilo de vida. E isto conduz a uma amizade real e verdadeira.