Promessas irreais e falhas condenam Baía de Guanabara
23 de junho de 2016O roteiro das mais de duas décadas de trabalho para despoluir a Baía de Guanabara, local de competições olímpicas no Rio de Janeiro e Patrimônio Mundial da Humanidade, passa por promessas fantásticas, execução falha, licitações duvidosas e inúmeros adiamentos. É o que conta o livro Baía de Guanabara - Descaso e Resistência, idealizado pela Fundação Heinrich Böll e assinado por Emanuel Alencar, lançado nesta quinta-feira (23/06).
O último compromisso irreal foi assumido diante do público internacional. Quando o Rio de Janeiro se candidatou como sede dos Jogos Olímpicos, em 2007, a promessa era reduzir em 80% o esgoto e lixo despejados na baía até 2016. Chegado o ano das Olimpíadas, estima-se que menos de 40% do esgoto seja tratado.
A meta foi abandonada publicamente pelo governo estadual, que culpou a falta de planejamento comum entre os vários gestores da baía pelo insucesso. Atualmente, não existe prazo fixado para que os números prometidos em 2007 sejam alcançados.
"Alguns erros não poderiam mais ser cometidos 22 anos depois do início do Programa de Despoluição da Baía de Guanabara. No entanto, continuam acontecendo", diz Emanuel Alencar, fazendo referência ao primeiro programa de limpeza da baía que obteve financiamento internacional, em 1993.
Dentre os equívocos, Alencar cita "os atrasos incríveis de cronograma, obras com pouquíssima transparência ou controle social, falta de acompanhamento e de pressão de órgãos controladores, como o Ministério Público e agência reguladora de saneamento".
Um dos casos mais emblemáticos é a construção da Unidade de Tratamento de Rio Irajá. Nesse processo, em vez de tanques com substâncias químicas, a água é tratada na calha do rio – o máximo de carga orgânica é retirada por meio de flotação. O projeto previa que unidade do rio Irajá entrasse em operação em 2013, mas nada funciona até hoje.
"Foram gastos 40 milhões e ela está lá, parada já há dois anos, porque ninguém sabe quem vai operar. A prefeitura não quer, o estado diz que não tem dinheiro. É inacreditável", lamenta Alencar.
Histórico problemático
Os problemas para gerir os recursos destinados ao saneamento básico do entorno da baía vêm de longe. No início da década de 1990, enquanto o governo do Rio de Janeiro ainda se organizava para pedir o primeiro financiamento internacional voltado para a limpeza da área, empresas já se articulavam nos bastidores em busca de vantagens.
Em 1993, o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) anunciou que liberaria US$ 350 milhões para Programa de Despoluição da Baía de Guanabara (PDBG). Mas fez uma exigência: o governo estadual, diante do seu limitado quadro de especialistas, teria que contratar uma empresa para gerir os recursos do programa. O processo, segundo as leis brasileiras, exigia a abertura de uma licitação, e a empresa vencedora receberia US$ 5 milhões pelo trabalho.
Foi então que Manuel Sanches, coordenador do grupo do governo do estado que idealizou o programa, recebeu um pedido especial. Funcionários do governador Leonel Brizola queriam dispensa da licitação em favor da Promon Engenharia.
O episódio de tentativa de favorecimento foi narrado por Sanches no livro. Depois de ouvir o pedido, ele explicou que não poderia fazer o contrato com a empresa abrindo mão da licitação. "A empresa teria todo o controle dos recursos do programa. Não era cabível fazer um contrato sem licitação: era irregular tanto do ponto de vista da legislação do estado como da legislação internacional dos bancos que estavam financiando", contou em entrevista à DW Brasil.
No dia seguinte ao pedido, 13 de abril de 1993, soube pelos jornais que seria exonerado. A recusa em favorecer a empresa havia lhe custado o cargo público.
Consultada pela DW Brasil, a Promon Engenharia preferiu não comentar o caso. A empresa, que em 2015 passou a ser investigada pela Operação Lava Jato, continuou participando de obras públicas e participou, inclusive, do projeto para o atual Parque Olímpico.
Limpeza e transparência insuficientes
O PDBG, que deveria ter sido concluído em 1999, foi encerrado apenas em 2006 e classificado como "pouco efetivo" e "insatisfatório" pelo próprio BID. O banco de fomento japonês, que cofinanciou o programa, chegou organizar uma moção de repúdio ao governo do Rio de Janeiro pelo "total fiasco do PDGB", mas foi contido pelo BID.
Depois de consumir cerca de US$ 1,2 bilhão em valores atuais, o programa não conseguiu sanear sequer uma das sub-bacias da baía. Algumas estações de tratamento de esgoto foram construídas, mas extensos trechos de redes coletoras seguem inexistentes. Resultado: a baía de Guanabara ainda recebe 18 mil litros por segundo de esgoto in natura de 15 municípios do entorno.
Diante dos atrasos, o Ministério Público entrou com uma ação contra o governo. Nela, a promotora Rosani Cunha pedia a apresentação de um cronograma com prazo de execução não superior a dois anos de todas as obras contempladas no PDGB sob multa diária de R$ 10 mil. Mas o juiz que analisou o caso optou pelo arquivamento do processo o que mostra, na visão de Alencar, que a Justiça também "jogou contra".
Depois do PDBG, foi criado como sucessor o Programa de Saneamento Ambiental dos Municípios do Entorno da Baía de Guanabara (PSAM). Questionada sobre a falha em atingir as metas, a Secretaria de Estado do Ambiente não respondeu às solicitações da DW Brasil.
A poluição industrial
A área da baía de Guanabara, com 337 km2 de espelho d'água e 143 rios e córregos, é ocupada por cerca de 9 milhões de habitantes e 1400 indústrias - 700 delas do setor petrolífero, o que traz também resíduos industriais. A despoluição deixou de ter prioridade.
"A baía está cheia, iluminada, parece um estacionamento de centenas de embarcações e plataformas que vêm pra manutenção", comenta Dawid Bartelt, diretor da Fundação Heinrich Böll no Brasil, alertando para o domínio da área pela indústria do petróleo. "A preocupação com a baía não tem sido ambiental. Ela tem sido foco de políticas públicas consideradas prioritárias para o desenvolvimento do Rio de Janeiro", adiciona, referindo-se à pretendida expansão do setor petrolífero em detrimento dos investimentos em saneamento básico.
Mas Barteldt acredita que isso ainda pode mudar. "A sociedade civil tem se mobilizado pra mostrar que não aguenta mais. A pressão para o setor público mudar tem que vir de fora, e temos visto que isso está começando a acontecer."