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Pé na praia: Um refugiado na favela

Thomas Fischermann24 de agosto de 2016

Na coluna desta semana, Thomas Fischermann conta do encontro com um jovem que fugiu do Congo para o Brasil há seis anos e hoje vive no Complexo do Alemão. O fato de sua comunidade ser perigosa não o assusta.

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Foto: Dario de Dominicis

Encontrei Yves na Olimpíads. Estávamos no Engenhão, a arena para atletismo, e na pista competiam os corredores de alta velocidade da Equipe Olímpica de Atletas Refugiados. Achei que essa foi uma das melhores ideias da Rio 2016, por dar visibilidade ao destino de refugiados, por ter resgatado alguns atletas que foram perseguidos pela miséria e pela guerra. Também foi um sucesso de relações públicas para o Comitê Olímpico Internacional (COI). Como eu, Yves estava no estádio para ver os refugiados correrem. "Ótima ideia", disse. "Aqui esses atletas aproveitaram de sua sorte ao máximo".

Mas Yves, de 24 anos, que fugiu do Congo para o Brasil há seis anos, é um caso muito mais típico. Nenhum comitê olímpico cuida dele – ele tem que se virar por si mesmo. Da arquibancada, ele também torceu para os atletas brasileiros ("e, além disso, ainda para os franceses e para os americanos, quero dizer, quem é que não gosta dos EUA?"). Depois, quando deixamos o mundo das Olimpíadas e fomos de trem suburbano para a cidade, ele me contou a sua história.

Yves foi uma criança-soldado no Congo. "Na época eu tinha uns 11 anos", conta o jovem. Diz isso com indiferença, não mostra muito as emoções. Yves andou pelo país por alguns anos com tropas rebeldes. Não sabe dizer quantas pessoas matou, e fala sobre isso de uma maneira estranha. "Sim, consegui muitos."

Seu pai era da oposição, um professor de sociologia que se posicionou contra o governo e teve de fugir do Congo quando Yves ainda era menino. Recebeu uma passagem aérea através de um padre italiano, o país de destino foi escolhido quase por acaso. Chamava-se Brasil. O irmão de Yves, um primo e três outros membros da família foram executados, a mãe morreu bebendo água contaminada. O adolescente Yves conseguiu se esconder. Acabou se tornando parte dos rebeldes armados.

Na guerra do Congo há incontáveis histórias como essa, e em conflitos armados de todo o mundo. Poucos têm um final feliz como o de Ives – pelo menos até agora. O pai fugitivo tinha um amigo no Congo que pertencia à facção do governo. Este homem ajudou o jovem Ives a contactar a ONU e organizar uma fuga conjunta da família. Faz seis anos que Yves aterrissou no aeroporto do Rio de Janeiro. Não conhecia mais seu pai ("Quando eu era criança ele era meu melhor amigo"), e muito menos esse novo país.

"Esse povo, os brasileiros, são completamente loucos!", diz. Fala da alegria, das festas e das mulheres bonitas que conhece no baile charme. "As mulheres gostam muito quando não se fala português direito", diz Yves, acenando. "Não sei por que, talvez pensem que a gente tenha muito dinheiro?"

Mas Ives não tem dinheiro nenhum. Mora no Complexo do Alemão, onde o pai o acolheu, junto com seu irmão, dois anos mais novo. Às vezes não dá nem para juntar o dinheiro do aluguel. Há três anos, porém, o pai abandonou de novo os filhos que tinha reencontrado. Voltou para o Congo. "Posso entender", diz Yves, e soa sério e sem emoção. "Ele quer fazer alguma coisa. Muitos dos seus amigos deram a vida pela luta. Ele sente que não deveriam morrer em vão." De vez em quando chegam mensagens de Whatsapp com notícias de seu pai. Yves quer ficar aqui no Brasil. "Não vou para o Congo, não quero morrer.”

Então ele vai se virando: um trabalho de pintor aqui, uma tradução para o francês ali. Quer estudar para ter uma qualificação, mas, no momento em que diz isso, soa como um plano distante. Ele quer sair do Alemão de alguma forma, se for possível. O fato de a sua favela estar ficando perigosa novamente não o assusta: "Venho da guerra", diz ele. Para ele, muito pior é o Alemão ser um lugar pobre. "Quando era criança, vivi na fartura", afirma. "Tínhamos um carro, uma piscina. Nunca imaginei ir morar na favela um dia. Ou que um dia iria andar pelas ruas de um bairro, e as pessoas olhariam para mim assustadas: quem é esse negro da favela, será que ele vai me assaltar?"

Thomas Fischermann é correspondente do jornal alemão Die Zeit na América do Sul. Na coluna Pé na praia, publicada às quartas-feiras na DW Brasil, faz relatos sobre encontros, acontecimentos e mal-entendidos - no Rio de Janeiro e durante suas viagens pelo Brasil. É possível segui-lo no Twitter e no Instagram: @strandreporter.