Quadrinhos testam capacidade dos alemães de rir de Hitler
24 de julho de 2006Imagine a cena: o líder nazista Adolf Hitler recebe a visita de Mahatma Gandhi, que tem fome a menos de duas horas do começo de seu jejum pela paz.
Se as coisas ainda não parecem bastante bizarras, o führer recebe trotes de Winston Churchill em seu telefone celular, uma vez imitando o apresentador alemão do programa Quem quer ser um milionário, depois oferecendo um seguro barato contra perdas de guerra.
Na maioria dos outros países, este humor surreal – tirado do Der Bonker, a última de três revistas em quadrinhos de Walter Moers, a qual mostra um ridículo Hitler tirado totalmente da realidade histórica – seria bem apreciado. Mas na Alemanha, o assunto é ainda sensível demais para muitos.
Chance de elaborar o passado
Enquanto as piadas em quadrinhos continuam sendo de mau gosto para alguns na Alemanha, a comédia, realizada com cuidado, pode auxiliar os alemães elaborar o passado e esperar mais do futuro. A análise é de Norbert Frei, historiador da Universidade de Jena.
"A comédia vai se tornar cada vez mais parte das discussões em torno de Hitler, uma vez que a grande distância de tempo tem um efeito relaxante sobre o tópico", diz ele. "Acho que o passar do tempo explica por que gerações posteriores estão em melhor posição do que os mais velhos para abordar o tópico através da sátira e da ironia."
Sátira sobre o nazismo não é inédita
Tirando o fato de a Segunda Guerra Mundial e Hitler serem bastante discutidos nas escolas alemãs, e de os horrores do Holocausto estarem claramente retratados em diversos livros, filmes, exibições e palestras, os alemães ainda têm problemas com a comédia relacionada a este período macabro de sua história.
Mas ironizar sobre o assunto não é algo inédito, de acordo com Frei. "Nos anos 50, a ironia foi usada para manter uma certa distância do assunto", lembra. "Naquela época as confrontações com o passado eram constantes, e as pessoas definitivamente lançavam mão da ironia e da sátira."
Enquanto que o cabaret alemão satirizava a questão, muito do conhecimento internacional saindo do país a respeito de Hitler tem se concentrado na análise meticulosa de sua relação com outros oficiais nazistas, sua família e vida pessoal.
Hitler faz parte da família
Apenas recentemente o ditador se tornou tema de galhofa dentro da Alemanha. O tempo necessário para as pessoas chegarem a esta atitude tem muito a ver com os problemas surgidos com a percepção de que Hitler era humano, e não o monstro diabólico de tantas interpretações, acredita o cartunista Walter Moers.
"Eu sei que a humanidade provavelmente teria mais facilidade em aceitar se ele realmente fosse um diabo ou um alienígena, mas ele é parte da família, por mais desagradável que isso possa ser", comenta Moers, que normalmente foge da imprensa, numa rara entrevista.
O cartunista não se sente obrigado a defender suas criações e decisões artísticas, as quais também mostram Hitler conversando com um Mussolini vestido de Deus, bebendo da última garrafa de conhaque e elogiando o bunker de seu anfitrião.
"A demonização que torna Hitler uma figura de culto entre os neonazistas é um perigo", conclui. O maior sucesso de Moers até o momento é Das kleine Arschloch (em tradução livre: O escrotinho), sobre uma criança anárquica e desbocada, já transformado em desenho animado.
Humanizando Hitler
Independente do papel da comédia, a mídia popular tem o potencial de alterar a percepção do público sobre Hitler. É o que aponta pesquisa conduzida por Wilhelm Hofmann, psicólogo da Universidade Koblenz-Landau.
Ele examinou as emoções dos estudantes com relação a Hitler após assistirem A queda, comparando-as com as dos que não viram o filme. Diversos críticos censuraram a intenção desta película de mostrar o lado humano do ditador.
"Antes do filme, muitos estudantes não tinham uma imagem clara de quem fosse Hitler. Eles foram fortemente influenciados por Bruno Ganz (ator que interpreta o ditador) e o contexto positivo em que Hitler é mostrado, e o consideraram de maneira menos assustadora do que os que não assistiram A queda", disse Hofmann.
Um filme, especialmente se lida superficialmente com o nazismo na Alemanha, é capaz de ter um efeito maior do que livros, quadrinhos ou documentários sobre os sentimentos dos estudantes, declarou Hofmann.
Se os alemães estão dispostos a aceitar Hitler como uma pessoa com características cotidianas ou se ele deve continuar sendo visto como o diabo é uma questão com que a Alemanha ainda precisa lidar, de acordo com o psicólogo. "Nossa pesquisa aponta uma tendência de tornar Hitler menos ofensivo. Cabe à sociedade decidir se quer isso ou não."