Nessa semana um colega me enviou um vídeo de uma criança, de uns 4 ou 5 anos, chorando inconsolada em frente à televisão. Quando seu pai perguntou a razão do choro, a menina negra respondeu sem rodeios: "eu posso ser morta pela cor da minha pele".
O pai fechou a cara e abraçou sua filha. Ele não falou "não fique assim, isso foi só um sonho ruim". Também não disse "imagine minha filha, isso é coisa da sua cabeça, essas coisas não acontecem". O pai, um homem negro, foi obrigado a se calar frente à realidade: a cor da pele de sua filha pode matá-la. E ela já sabe disso.
Nunca vou me esquecer quando minha filha me disse que na escola dela nenhuma mãe era como eu. Na época, ela tinha exatamente 2 anos e havia se mudado para uma escola particular na zona sul do Rio de Janeiro; e essa foi uma das primeiras constatações que ela fez: não haviam outras mães negras. E, ao que tudo indica, essa era uma questão que não causava incomodo a ninguém, a não ser para ela.
É impressionante como toda a complexidade que envolve a estrutura racista que nos ordena há mais de 500 anos pode ser traduzida de forma simples e direta pelas crianças.
Por um lado, temos a experimentação de todos os privilégios que caminham junto com a supremacia branca desde o primeiro suspiro das crianças brancas (ou talvez antes disso). Isso não quer dizer que tais crianças não estejam sujeitas, infelizmente, às negligências e violências que circundam o mundo infantil, longe disso. Ainda há muito o que ser feito no sentido de garantir que as crianças – todas elas, sem distinção – possam viver e experimentar a infância de forma segura, plena, saudável e, se possível, feliz.
Mas, por outro lado, não podemos fechar os olhos para o que já é sabido pelas crianças negras: a cor da pele ainda define a infância, podendo ser um fator limitador ou até mesmo excludente dessa fase da vida.
Herança da escravidão e da política de embranquecimento
Essa dimensão fica ainda mais terrível quando lembramos que durante muito tempo, grande parte das crianças negras deste país experimentaram a infância sob o julgo da escravidão. Os números do tráfico transatlântico apontam a chegada de milhares de crianças africanas escravizadas no Brasil. Crianças cujas vidas foram estruturadas pela exploração sistemática do trabalho, pela possibilidade de serem apartadas de seus pais, ou então de serem deixadas na roda dos expostos, pois suas mães haviam sido vendidas como amas-de-leite para alimentar algum bebê branco. Crianças negras que eram chamadas de "crias da casa" e que foram representadas por Jean Baptiste Debret em litogravuras nas quais não havia muita distinção entre elas e os animais de estimação das famílias senhoriais.
Essa marca deletéria da escravidão quis se impor como uma espécie de história única das crianças negras no Brasil, e durante muito tempo a república brasileira apostou que o bem-estar e o desenvolvimento do Brasil estariam intimamente ligados ao não nascimento de crianças negras. Porque, trocando em miúdos, é disso que se tratava a política imigracionista e de embranquecimento colocada em prática pela Primeira República (1889-1930): evitar o nascimento de crianças negras brasileiras. O futuro deveria ser branco, assim como a pele dos futuros bebês do país. Uma política que não deu certo, mas que ajudou a reforçar uma ideia terrível que continuava dificultando que a infância fosse uma etapa da vida, para ser um privilégio usufruído por crianças de pertenças raciais e de classes sociais muito específicas.
Sem dúvida, a população negra não ficou de braços cruzados, e criou uma série de estratégias para que seus filhos e filhas sobrevivessem, apesar do mundo que parecia não os desejar. Somos frutos, dessas estratégias.
Mas mesmo com muita luta, ainda há um roubo da infância negra. Porque nossas crianças, desde a mais tenra idade, são informadas sobre todos os cerceamentos e limitações causados pelo racismo, inclusive a possibilidade de uma finitude precoce de suas vidas. Para elas, há um medo maior do que desse ser imaginado, grande, peludo, azul e com um olho no meio da testa. Um medo que, ao contrário do bicho-papão, que fica pra trás à medida que crescemos, o racismo nos acompanha a vida inteira.
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Mestre e doutora em História Social pela USP, Ynaê Lopes dos Santos é professora de História das Américas na UFF. É autora dos livros Além da Senzala. Arranjos Escravos de Moradia no Rio de Janeiro (Hucitec 2010), História da África e do Brasil Afrodescendente (Pallas, 2017), Juliano Moreira: médico negro na fundação da psiquiatria do Brasil (EDUFF, 2020) e Racismo brasileiro: Uma história da formação do país (Todavia, 2022), e também responsável pelo perfil do Instagram @nossos_passos_vem_de_longe.
O texto reflete a opinião da autora, não necessariamente a da DW.