Quanto de Hitler há em Wagner?
2 de agosto de 2017Na tela, um convidado simpático, gentil e elegante, trajando smoking e gravata borboleta, conversa de forma descontraída com a diretora do festival e com os netos de Wagner. De repente, um alerta interrompe a exibição: "Parem o filme! Desligue o celular! Gravações são estritamente proibidas!" Pouco depois, a exibição é retomada.
As gravações são proibidas durante a exibição dessa película histórica no Museu Richard Wagner, na Casa Wahnfried, em Bayreuth, porque uma possível difusão pela internet significaria uma infração aos direitos de imagem de uma das pessoas que aparecem nela: Verena Wagner, a última neta viva de Richard Wagner. O filme pertence ao espólio de um outro neto, Wolfgang Wagner, que o gravou quando tinha apenas 16 anos. A gravação foi exibida durante o simpósio Wagner no Nacional-Socialismo – sobre a questão do pecado original na arte.
O que se vê na tela são imagens do Festival de Bayreuth de 1936: a subida até o Teatro do Festival, no alto da colina; o diretor Heinz Tietjen; o ministro da Propaganda, Josef Goebbels; o dirigente Wilhelm Furtwängler; uma sorridente Winifred Wagner, a diretora do festival e mãe de Wolfgang. E, depois da apresentação, o Führer no palco, ao lado do coral e dos solistas, recebendo os aplausos da plateia. A saudação nazista é feita várias vezes. Quem assiste às imagens não consegue evitar o desconforto de ver Hitler ser apresentado como uma pessoa agradável e simpática.
Wagner no palco como antissemita
Já quem esperava que o simpósio sobre Wagner e o nazismo trouxesse revelações sensacionais saiu dele decepcionado. O tema também não é nenhuma novidade em Bayreuth, como lembra o diretor do festival, Sven Friedrich. Ao longo dos próximos anos, a temática deverá ser aprofundada, em seus vários aspectos, na série de simpósios "Discurso Bayreuth", que integra a programação paralela do festival.
Já nos anos 1980 e 1990 houve uma exposição e um simpósio com o nome Hitler e os judeus. Nas proximidades do busto de Richard Wagner, na Colina Verde, ainda pode ser vista a exposição Vozes caladas, de 2012, sobre os colaboradores judeus do Festival de Bayreuth e o que aconteceu com eles. E, desde a abertura do Museu Richard Wagner, em 2015, o local tematiza também a evolução das convicções ideológicas do compositor.
Mas o assunto está longe de ter se esgotado. Declarações como "mas Wagner não tem culpa disso" ou "vamos ignorar toda essa imundice que foi associada a Wagner" podem ser ouvidas ainda hoje. Friedrich lembrou a "dimensão metapolítica da obra de Wagner, que a tornou assimilável pelos nazistas".
O simpósio começou com um debate intenso sobre a atual encenação de Os mestres cantores de Nurembergue, sob responsabilidade do dirigente australiano Barrie Kosky, que tem raízes judaicas. Ele apresentou Wagner no palco, pela primeira vez, como um antissemita e, com os seus cenários – por exemplo o salão dos Julgamentos de Nurembergue –, incluiu o histórico de encenações da obra na sua interpretação.
Para a autora alemã Irmela von der Lühe, a encenação de Kosky é a concretização de uma exigência que o escritor Thomas Mann fizera já em 1947. Ao palestrar sobre as relações entre Mann e Bayreuth, Von der Lühe lembrou que o Prêmio Nobel de Literatura de 1929, que então vivia no exílio californiano, rejeitou o convite para ser presidente de honra de uma planejada fundação para a reabilitação do desacreditado Festival de Bayreuth, ao menos "enquanto não estiver às claras tudo o que houver sobre o pecado original de Bayreuth".
E em 2017 já está tudo às claras? O espólio de Wolfgang Wagner foi entregue ao arquivo histórico da Baviera em 2013 e levará anos para ser estudado. Outras fontes devem estar faltando, o que não se sabe exatamente. Mas uma encenação como esta de Kosky teria sido possível em 1951, na reabertura do Festival de Bayreuth? Em vez de uma enfrentamento crítico com o histórico da obra, o que se viu então foi uma encenação descompromissada e focada no aspecto mítico, a cargo de Wieland Wagner.
Trata-se de repressão do passado? Uma coisa é certa: havia muitos convidados do exterior na reinauguração, sobretudo da França, e entre eles muitos judeus que sobreviveram ao Holocausto e eram admiradores fervorosos de Wagner. O reinício do Festival de Bayreuth foi acompanhado com interesse em todo o mundo.
Uma questão de música ou ideias?
Em 1949, Thomas Mann escreveu, numa carta: "Está lá – na fanfarrice, no eterno ficar dando discurso, na necessidade de falar mais alto que os outros, de querer dar palpite em tudo – uma inominada imodéstia que serviu de modelo a Hitler – com certeza, há muito 'Hitler' em Wagner." Ainda assim, Mann via Wagner mais como um cosmopolita europeu do que como um proto-nazista. E muito antes da catástrofe da Segunda Guerra Mundial e do Holocausto, esse crítico de primeira hora de Hitler escreveu: "A ideia de que esse velhaco idiota por lá desfrute de um romantismo heroico-açucarado é repulsiva para além de todas as medidas."
Com frequência se constata que o espírito no qual Wagner escreveu suas obras é, desde o início, racial e antissemita. Esse aspecto foi abordado na palestra Hitler e sua Bayreuth à parte: Richard Wagner como analista do século 20, da escritora suíça Micha Brumlik. Segundo ela, no artista há "processos pré-conscientes e inconscientes que se incorporam em seu trabalho, e o que se manifesta é mais do que o autor pretendia."
O uso que os nazistas fizeram de Wagner e a bajulação do Festival de Bayreuth em torno de Hitler costumam ser apresentados como mal-entendidos ou relativizados com o argumento do distanciamento histórico, afinal Wagner morreu em 1883.
Em 1923, porém, o genro de Wagner, Houston Stewart Chamberlain, e a nora do compositor, Winifred Wagner, saudaram Hitler como o novo Parsifal e o novo messias da Alemanha. Já em 1925, o Festival de Bayreuth foi politizado com a presença de Hitler. O historiador e nacionalista Chamberlain era considerado um "precursor de Hitler" e justificava suas teses racistas com a superioridade da música alemã. Nesse sentido, ele argumentava que, como os alemães eram gigantes na música, também deveriam ser gigantes na política.
Foi o discurso inflamado de Wagner ou a sua aversão a judeus que inspiraram Hitler? O simpósio tocou apenas de leve nessa questão central. Sabe-se que Wagner tornou o antissemitismo socialmente palatável nos círculos burgueses com seu panfleto O judaísmo e a música. Mas ele também elogiou os judeus, chamando-os de "os mais nobres entre nós". O que Cosima Wagner, que sobreviveu ao marido em quase meio século e que agrupava nacionalistas germanófilos em torno de si, assimilou diretamente de Richard Wagner? O quanto ela selecionou entre as inúmeras declarações contraditórias do compositor? Esse seria um tema para um próximo simpósio.