Nesta semana, o Nationalmuseet, o Museu Nacional da Dinamarca, anunciou que devolverá um raro manto tupinambá ao Brasil. Ele está na capital dinamarquesa desde 1689 e é uma das mais bem preservadas peças dessa natureza, dentre 11 remanescentes. Composto de mais de 10 mil penas vermelhas de guará, o manto tem mais de um metro de altura, composto por uma capa e um gorro, e é considerado um artefato sagrado.
Esse manto também está envolto de inúmeras histórias, boa parte delas repletas de violência. Mas, se há algo bonito nisso tudo, é que tais histórias começam e terminam com os tupinambá.
No Brasil de 2023 ainda é importante pontuar que, durante muito tempo, tupinambá foi um termo utilizado para designar a maior parte dos indígenas que viviam nas terras que hoje conhecemos como Brasil. Era assim que os portugueses chamavam as sociedades indígenas que falavam a língua tupi e suas variantes, desde o Pará até a região Sul do país.
No entanto, esse termo não abarcava as complexas identidades dessas milhares de sociedades, que, apesar da proximidade linguística, se entendiam e se denominavam de outras formas. Atualmente, aqueles que se reconhecem como tupinambá vivem em três regiões brasileiras, uma localizada no Pará (no baixo Rio Tapajós), outra na Bahia, e a terceira nos estados do Rio de Janeiro e Espírito Santo.
Para essas sociedades, os mantos eram objetos ritualísticos de grande importância. Confeccionada por meio de sabedoria ancestral, a vestimenta era utilizada em momentos especiais, como no enterro de familiares, assembleias políticas e rituais religiosos específicos.
Contexto de subjugação, usurpação e violência
Não se sabe ao certo como o manto em questão acabou em Copenhague no final do século 17, mas a chegada desse e de outros mantos tupinambá à Europa é prova de uma intensa troca comercial realizada em meio à colonização, um longo e violento processo que, vale lembrar, reordenou as forças políticas, econômicas, sociais e raciais de todo o Ocidente.
Ressalto isso porque, sob algumas perspectivas, a devolução do manto parece ser um ato pio e generoso de uma instituição europeia. Tenho poucas dúvidas de que o investimento e conhecimento tecnológico construído pelas instituições museais da Dinamarca e de outros países europeus foram fundamentais para a preservação dessas e de outras tantas peças indígenas que compõem os acervos de muitos museus do continente.
Mas também sei que a aquisição dessas peças foi feita num contexto de subjugação, usurpação e violência cometidas por algumas nações europeias em nome de seus próprios interesses. No jogo do "se", se não fossem os museus europeus, é provável que esses mantos tivessem se perdido com o tempo; mas, se não fosse a colonização (e a mortandade indígena que ela acarretou em toda a América), esses mantos dificilmente teriam chegado à Europa e teriam cumprido a finalidade pra a qual foram produzidos.
Reparação histórica
Não quero me adentrar na importante discussão da qual a devolução desse manto faz parte. Há um movimento de reparação política e histórica em diferentes partes do mundo, que exigem que instituições europeias reconheçam que seus acervos foram constituídos em meio a projetos e processos imperialistas daquilo que se convencionou chamar de "fardo do homem branco": uma ideia mentirosa que defendia que cabia às nações brancas e/ou europeias salvar a humanidade , e guiar as sociedades não brancas nos signos da civilização (que também era entendida como sendo branca e europeia).
Esse é um debate bastante polêmico, tanto que as negociações para a devolução do manto aconteceram de forma sigilosa entre as diretorias do Museu Nacional da Dinamarca e do nosso Museu Nacional, no Rio de Janeiro.
Reconhecimento no Brasil de hoje?
O que considero fundamental pensar é: que Brasil é esse que receberá o manto tupinambá?
Sem dúvida esse processo de devolução evoca sentimentos pátrios. Mas tais sentimentos precisam ser acompanhados por políticas públicas que reconheçam e invistam nas instituições museais do país, para que tragédias como a que acometeu o Museu Nacional em 2019 – que pegou fogo e teve seu prédio e a maior parte de seu acervo destruídos – não se repitam.
E mais: o Brasil que comemora a volta do manto tupinambá está disposto a reconhecer que essa devolução é fruto das ações de lideranças tupinambá, sobretudo daqueles que vivem em Olivença, no sul da Bahia, e que desde os anos 2000 estão lutando para que a peça seja devolvida? Esse mesmo Brasil se lembra da reivindicação de Nivalda Amaral de Jesus, que, em meio à Mostra do Redescobrimento, exigiu que o manto fosse devolvido a seu povo? O Brasil conhece a história, arte e luta de Glicéria Tupinambá, que sem dúvida alguma é uma das pessoas centrais na devolução da peça sagrada? Esse Brasil está mesmo disposto a realizar o reconhecimento e a demarcação das terras indígenas?
Enfim: o Brasil que recebe de volta o manto que foi produzido pelos tupinambá de outrora reconhece os tupinambá de hoje como parte integrante de seus cidadãos e cidadãs?
Torço para que o Brasil faça jus à grandiosidade do manto tupinambá e de todas as histórias que ele carrega.
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Mestre e doutora em História Social pela USP, Ynaê Lopes dos Santos é professora de História das Américas na UFF. É autora dos livros Além da Senzala. Arranjos Escravos de Moradia no Rio de Janeiro (Hucitec 2010), História da África e do Brasil Afrodescendente (Pallas, 2017), Juliano Moreira: médico negro na fundação da psiquiatria do Brasil (EDUFF, 2020) e Racismo brasileiro: Uma história da formação do país (Todavia, 2022), e também responsável pelo perfil do Instagram @nossos_passos_vem_de_longe.
O texto reflete a opinião da autora, não necessariamente a da DW.