Rússia fez gol contra ao cortar fornecimento de gás à UE
31 de agosto de 2023Por mais de 50 anos, a Rússia foi uma confiável fornecedora de gás natural para a Europa, cumprindo suas obrigações contratuais mesmo no auge da Guerra Fria. Essa reputação desempenhou um papel central na dependência alemã do gás russo, à medida que a economia europeia dava forma a um modelo baseado em exportações e energia barata.
Foi assim até tanques russos invadirem o território ucraniano, em 24 de fevereiro de 2022. À invasão seguiu-se uma série até então sem precedentes de sanções do Ocidente à Rússia. O gás natural foi excluído de qualquer sanção formal, ao contrário do petróleo e do carvão russos, mesmo com o esforço da Alemanha – que antes da guerra dependia da Rússia para o fornecimento de mais de metade do gás por ela consumido – e de outros países para se livrar do gás russo.
A Rússia respondeu ao apoio resoluto e inequívoco da União Europeia (UE) à Ucrânia usando como arma o seu fornecimento de gás ao bloco, que, antes da invasão, obtinha da Rússia mais de um terço da demanda do produto. A estatal russa Gazprom foi reduzindo arbitrariamente o fornecimento através do Nord Stream 1, o maior gasoduto da Rússia para a Europa, até fechá-lo por tempo indeterminado, há um ano, em 31 de agosto de 2022.
Na Europa, a resultante escassez de gás causou temores de falta do produto e racionamento de energia no inverno. Os preços do gás no continente dispararam para um máximo histórico, acima dos 343 euros por megawatt-hora no final de agosto de 2022, elevando consigo a inflação.
No entanto, os piores cenários não se concretizaram, e a Europa evitou uma crise energética total graças a um inverno mais ameno do que o normal, à redução do consumo de gás e ao aumento das importações de gás natural liquefeito (GNL) de outros países.
"A estratégia russa foi autodestrutiva, um fracasso total", observa a especialista em energia Simone Tagliapietra. "O Kremlin pensou que, ao usar gás como arma contra a UE, o bloco seria forçado a reduzir imediatamente o seu apoio à Ucrânia, e isso se mostrou completamente errado."
Prejuízos para a economia alemã
No entanto, as incertezas no mercado de gás obrigaram indústrias que fazem uso intensivo de energia, como a química, a de fertilizantes e a de papel, a fecharem unidades ou a reduzirem a produção. Na Alemanha, a produção nos setores de uso intensivo de energia caiu quase 20% em relação aos níveis anteriores à guerra entre o final de 2021 e o final de 2022.
Os elevados preços da energia prejudicaram a competitividade internacional da Alemanha. De acordo com um relatório recente da Câmara de Comércio e Indústria Alemã (AHK), quase um terço dos fabricantes alemães estão considerando ou já implementando planos para transferir sua produção para o exterior diante dos elevados custos de energia no país.
Embora os preços do gás tenham caído drasticamente no ano passado, sendo negociados a 35 euros por megawatt-hora nesta segunda-feira (28/08), eles ainda estão bem acima dos níveis observados em anos anteriores.
Os reservatórios de gás natural da Europa estão com mais de 90% da capacidade preenchida, o que é muito acima do objetivo fixado pela UE em 1º de novembro de 2022. O bloco substituiu grande parte do abastecimento russo por gás dos EUA, da Noruega e do Catar.
A demanda por gás permanece moderada num contexto de enfraquecimento do setor industrial, o que ajuda a manter os preços sob controle. Ainda assim, o mercado de gás continua vulnerável, pois temperaturas congelantes no próximo inverno europeu podem esgotar rapidamente os estoques.
Rússia perde espaço no mercado internacional
Para a Rússia, que enviava dois terços das suas exportações de gás para a Europa, a decisão de fechar o Nord Stream 1 foi um gol contra, dizem especialistas.
A participação de mercado da Rússia caiu drasticamente na UE, para cerca de 10%, mesmo com o redirecionamento das rotas de gás. As exportações de gás russo através de gasodutos para a Europa caíram quase 60%, para 62 bilhões de metros cúbicos (BMCs) em 2022, o que levou a Gazprom a reduzir a produção em um quinto. A projeção é de que caiam ainda mais este ano, com apenas 10 BMCs entregues nos primeiros cinco meses através dos gasodutos restantes na Ucrânia e do Turkstream (que liga a costa sul da Rússia à Turquia através do Mar Negro).
"A Rússia perdeu sua posição de grande exportadora internacional de gás, e a perdeu para sempre", resume Tagliapietra.
O gás natural é menos fungível que o petróleo, que a Rússia conseguiu redirecionar de forma bem-sucedida para países como a China e a Índia, embora com grandes descontos. É também mais difícil de transportar e necessita de amplos investimentos em gasodutos e instalações de liquefação e regaseificação.
Com a maior parte da sua infraestrutura de exportação de gás construída para atender aos compradores na Europa, a Rússia está tendo dificuldade para redirecionar seu gás para a China e outros clientes na Ásia.
As receitas obtidas com a venda de gás caíram quase 45%, para 710 bilhões de rublos (6,8 bilhões de euros), nos primeiros cinco meses de 2023, em comparação com o mesmo período do ano passado, informou a agência de notícias Bloomberg, citando dados do Ministério das Finanças russo.
A Rússia tenta recorrer a antigas repúblicas soviéticas, como o Cazaquistão e o Uzbequistão, para vender seu gás, aumentar suas exportações de GNL e expandir sua rede doméstica de gás para manter as vendas. Também aposta que a Turquia vá se tornar um possível centro de distribuição de seu gás, como rota alternativa para a Europa, mas os detalhes permanecem vagos.
E Moscou também vê a China como uma alternativa às perdas no enorme mercado europeu. Mas isso exigiria a construção de novos gasodutos, em adição ao já existente Força da Sibéria.
"Se [o presidente Vladimir] Putin planeja construir gasodutos para a China com a mesma capacidade dos que vão para a Europa, ele vai precisar de algumas décadas", comenta o analista de energia russo Mikhail Krutikhin, acrescentando que Pequim se mostra relutante em comprar mais gás russo.
UE ainda compra gás russo
A continuidade da compra de gás russo pela União Europeia, ainda que num volume bem inferior ao que era adquirido antes da guerra, levou a apelos para a eliminação gradual das importações de GNL, que aumentaram 37%, para 22 BMCs no ano passado. Bélgica, França e Espanha compraram volumes recordes da Rússia em 2022.
O aumento das importações de GNL vai na contramão do plano da UE de se tornar independente de todos os combustíveis fósseis russos até 2027 e ainda contribui com bilhões de euros em receitas para o Kremlin. No início deste ano, a comissária de energia da UE, Kadri Simson, instou as empresas do bloco a não assinarem novos contratos com fornecedores russos.
Aqueles que continuam a comprar gás russo citam potenciais problemas jurídicos com a ausência de decisões coibitivas a nível de UE, os riscos de inflação e, no caso da Áustria e da Hungria, que não têm acesso ao mar, impossibilitando diversificar rapidamente os fornecimentos.
Países como a Holanda e a Espanha estão tomando medidas para deixar de comprar GNL russo, mas, na ausência de quaisquer sanções que determinem o abandono definitivo do gás russo, isso poderá demorar algum tempo.
Quanto à Rússia, sua guerra do gás, que levou a UE a encontrar novos fornecedores e a acelerar a sua transição para energias renováveis, prejudicou permanentemente sua condição de principal fornecedora de gás da Europa.
"Mesmo se a Rússia puder oferecer gás a preços muito baixos no futuro, os europeus vão se lembrar que contratos poderão ser quebrados a qualquer momento por razões políticas", diz Krutikhin. "Não dá para confiar em assinaturas e contratos de autoridades russas. A Rússia não é confiável."