Registro de processo de Auschwitz como patrimônio da Unesco
10 de junho de 2016Cerca de 200 carcereiros da SS, o "esquadrão de proteção" nazista, e 8 mil membros da ala armada Waffen-SS prestaram serviço no campo de concentração de Auschwitz. Deles, 22 tiveram que responder à Justiça alemã em 1963. Eles não eram apenas acusados de homicídio em casos isolados, mas, acima de tudo, por ter obedecido às "ordens assassinas da liderança estatal alemã", participando, assim, de um crime em massa.
Esse processo ficou conhecido como "Julgamento de Auschwitz de Frankfurt", ou "Segundo Julgamento de Auschwitz" (distinguindo-o do de 1947, pelas autoridades polonesas). Ao longo de 20 meses, foram ouvidas mais de 300 testemunhas, entre as quais quase 200 sobreviventes de Auschwitz. No fim, somente seis réus foram condenados à prisão perpétua por homicídio; três outros foram absolvidos, por falta de provas.
Ainda assim os Processos de Frankfurt representam uma guinada decisiva na elaboração dos crimes nazistas. Eles estão documentados em 454 pastas de atas e 103 gravações de áudio, preservadas no Arquivo Central Estatal de Hesse, em Wiesbaden. A comissão alemã da Unesco acaba de indicar esses testemunhos históricos para inclusão no acervo Memory of the World do órgão educacional, científico e cultural da ONU.
Uma testemunha da época
O presidente do comitê alemão de indicações para o programa de Memória do Mundo, Joachim-Felix Leonhard, tinha 16 anos quando presenciou pessoalmente uma das audiências dos processos de Auschwitz.
"É algo que não se esquece", afirma. "Ainda hoje tenho as vozes das testemunhas nos ouvidos, e os rostos delas diante dos olhos." Também por esse motivo, bem no topo da lista pessoal de prioridades do funcionário da Unesco para inclusão no patrimônio mundial estavam esses documentos fonográficos e atas, de que ele tomou conhecimento em 1998, através do Instituto Fritz Bauer.
Uma vez que, como membro do comitê, o próprio Leonhard não pode apresentar propostas para uma indicação, a sugestão partiu do Arquivo Estatal de Hesse.
"Na época, o Julgamento de Auschwitz foi uma das mais importantes oportunidades para que testemunhas de todos os países envolvidos fossem escutadas, em seus próprios idiomas, com a ajuda de tradutores-intérpretes", explica o historiador Leonhard. Esse fato torna os documentos ainda mais interessantes em âmbito internacional.
A importância de Fritz Bauer
A meta do programa Memória do Mundo é "preservar, em arquivos, bibliotecas e museus, testemunhos documentais de valor extraordinário, e torná-los acessíveis a todo o mundo por caminhos informáticos".
Como aponta Joachim-Felix Leonhard, a tendência é cada vez mais os documentos de diversos países se complementarem reciprocamente. Isso também se aplica aos registros dos julgamentos de Frankfurt: ao lado do diário de Anne Frank, já incluído no acervo da Unesco, eles compõem mais uma peça de quebra-cabeças no estudo do Holocausto.
As ações penais contra criminosos de Auschwitz no início dos anos 60 só foram possíveis graças à iniciativa do procurador-geral do estado alemão de Hesse na época, Fritz Bauer.
Na Alemanha do pós-guerra, reinava o desejo de esquecer tudo o que acontecera nos anos do regime de Adolf Hitler. Os Aliados já haviam punido alguns criminosos de destaque; reconstrução e bem-estar eram mais importantes para os alemães do que o processamento histórico do passado nacional-socialista.
Nesse quadro, Fritz Bauer, judeu e ex-interno de um campo de concentração na Dinamarca, foi um dos mais significativos pioneiros das reformas do direito penal e da aplicação de penas no país. Ele se empenhou pela ressocialização e pela responsabilidade ativa do sistema judiciário no reerguimento de uma sociedade democrática.
A memória desse herói pacífico do pós-guerra alemão foi resgatada no filme Der Staat gegen Fritz Bauer (O Estado contra Fritz Bauer), de Lars Kraume, premiado com o Lola de Ouro em 2016.
Cultura não é só coisas belas
O instituto que leva o nome do ex-procurador-geral é um centro de estudos e documentação dedicado à história e às repercussões do Holocausto. No sítio de internet da instituição estão disponibilizadas sequências selecionadas das gravações feitas durante as audiências em 1963.
Werner Konitzer, diretor do Instituto Fritz Bauer, comenta que "aquilo que aconteceu em Auschwitz não teria sido considerado possível antes ". Os depoimentos comprovam o choque das forças ocupadoras da Rússia e dos Estados Unidos ao chegarem ao campo de concentração na atual Polônia.
Também as gravações de áudio falam por si. Os acusados tentam se justificar, afirmando só ter obedecido a ordens. No entanto, "há uma frieza assassina", sublinha Konitzer. "Nota-se que os criminosos não estavam apenas seguindo ordens. A linguagem burocrática deles está permeada de um ódio frio."
Assim como Joachim-Felix Leonhard, Konitzer considera importante a inclusão dos registros na memória mundial da Unesco. "Quando se trata de coisas belas, a gente não se pergunta por que queremos preservá-las como patrimônio cultural. Mas também é parte da cultura se confrontar com coisas e acontecimentos difíceis."
A Unesco alemã submeteu a documentação sobre o Julgamento de Auschwitz em Frankfurt à direção geral da organização mundial, em Paris, que tem até o próximo ano para apresentar sua decisão. A rede digital da Unesco inclui atualmente 348 testemunhos históricos, dos quais 22 são alemães. Até hoje nenhuma candidatura partindo do país foi rejeitada.