Peça da crise?
1 de novembro de 2009O título é conhecidíssimo, porém, nos últimos anos, Rei Lear, de William Shakespeare, foi relativamente pouco encenado na Alemanha. E eis que, de súbito, pululam os Lears nos palcos do país. No espaço de poucas semanas, os teatros municipais de Colônia, Bochum, Göttingen e Moers lançaram novas montagens do clássico elisabetano. Pouco depois vieram as de Wuppertal e Oldenburg. E também outras, inclusive em Viena. Será Rei Lear a peça teatral da crise financeira?
Homem de negócios
No Kammerspiele de Bochum, o rei Lear não tem sentimentos. Trajando o terno preto de um moderno homem de negócios, ele reparte entre as filhas o seu reino, ou seja, as parcelas da empresa familiar. Delas, exige declarações de amor filial, falsos rituais. O fato de que a caçula, Cordelia, se nega a participar, pouco parece afetá-lo. Ela renega o sistema, sendo, portanto deserdada.
O diretor artístico do teatro municipal de Bochum, Elmar Goerden, encena a tragédia shakespeariana a partir de um ponto de vista totalmente contemporâneo. Na frente do palco, uma cama; atrás, uma sala de conferências: assim é o cenário concebido por Silvia Merlo e Ulf Stengl.
Abdicar do poder é o maior desafio para um velho manipulador como Lear. Algo que ele não consegue, principalmente depois da recusa de Cordelia, que compromete seu equilíbrio de forças. Mas, quem sabe, mesmo sem ela, a derrocada fosse inevitável? Pois a geração seguinte é caracterizada por ambição, crueldade e falta de consciência.
"Lear não é um bom rei"
O ator Klaus Weiss representa o rei como déspota, tão acostumado à violência de comandar, que para ele é uma prerrogativa indiscutível. No entanto, ao se ver desprovido de seu posto e desobedecido por todos, fica perplexo e não sabe como lidar com a situação.
Os paralelos com os chefões da economia depostos são tão óbvios que a encenação prescinde de indicadores para a atualidade do material. Esse Lear não desperta a menor compaixão. Com sua frieza de sentimentos, ele formou a geração que agora o humilha e o leva à loucura.
"Já no original de Shakespeare, ele não é um bom rei", comenta o diretor Goerden. "O tema central é a partilha de propriedade e capital num mundo em que o doador, por sua vez, espera uma retribuição."
Mulheres brutais
Karin Beier, do teatro municipal de Colônia, tampouco montou Lear pelo fato de a peça ser um excelente comentário de nosso tempo, mas sim por querer abordar temas fundamentais.
"O que resta do ser humano quando todos os laços se rompem? Quando não há mais qualquer laço familiar, social, nacional, quando até mesmo as ligações do corpo e espírito o abandonam? O que é o bicho-homem? Essa é a pergunta que faz Lear nos campos, ao ver [o suposto] Tom [O'Bedlam], demente e nu. E a resposta de Shakespeare é niilista: ele desfigura e aniquila o ser humano."
A diretora artística de Colônia entregou todos os papéis a mulheres. Na Inglaterra de Shakespeare, somente homens faziam teatro, porém, a meta da diretora não é uma revanche feminista. As seis atrizes derrubam um muro a pontapés, praticam atos de violência umas contra as outras, chegam a seus limites físicos e psíquicos. Beier explica:
"Mulheres que falam sobre sadismo, sobre crueldade, sobre brutalidade – afinal, essa peça é infinitamente brutal – são território desconhecido, de um modo totalmente diferente. E através disso esperei criar um espírito – que está no centro de Shakespeare – que é muito, muito perturbador."
Sem consolo
A montagem coloniana exige muito dos espectadores. Não somente devido às imagens crassas, mas também pelo fato de as mulheres representarem papéis duplos.
Também nos programas teatrais de Göttingen, Moers, Wuppertal e Oldenburg, a tragédia está presente. Quem monta Lear, expõe um mundo sem esperança. "De 12 personagens, nove jazem mortas no fim da peça", conta Elmar Goerden. "É uma estatística dura, mas, para quem acompanha a peça, totalmente plausível, quase lógica. E quem estiver em busca de consolo, vai realmente buscar em vão o que procura nessa peça."
Autor: Stefan Keim (av)
Revisão: Soraia Vilela