Religiões afro-brasileiras sofrem com a intolerância
1 de fevereiro de 2019Na manhã de 2 de fevereiro, milhares de moradores e turistas vão dar as boas-vindas aos primeiros raios de sol nas praias do Rio Vermelho. A Festa da Rainha do Mar, celebração em homenagem à divindade do candomblé Iemanjá, é uma tradição de Salvador.
"É mais do que uma festa turística, é mais do que uma festa do folclore. E, para as pessoas que creem, é uma festa que tem importância religiosa, simbólica e de obrigação", diz Marcelo Nascimento Bernardo da Cunha, diretor do Museu Afro-Brasil, da Universidade Federal da Bahia (UFBA).
"Não é raro nestas festas ter grupos neopentecostais pregando, demonizando esta festa, dizendo que é um lugar do pecado", frisa Cunha, acrescentando que esse tipo de distúrbio já é antigo. "É o de sempre. No século 19 já existiam esses ataques", lamenta.
Naquela época, o próprio Estado oprimia a cultura trazida pelos escravos vindos da África. "Eram política e cultura forjadas pelo Estado. Os terreiros eram controlados. Foi o Estado que tornou algo natural que esses lugares fossem atacados", afirma.
Cunha é responsável, no Museu Afro-Brasil, pela Coleção Estácio de Lima, que documenta testemunhos da repressão do Estado. Ela inclui artefatos que foram apreendidos violentamente pela polícia em locais de culto.
Ainda hoje, a violência e a intolerância estão presentes. Desde 2013, o Centro de Referência de Combate ao Racismo e à Intolerância Religiosa Nelson Mandela registrou 16 ataques contra terreiros na Bahia. E de acordo com a Secretaria de Promoção da Igualdade Racial da Bahia (Sepromi), a intolerância religiosa entre 2017 e 2018 aumentou em 124%.
"Essa é a grande contradição: a gente mora em Salvador, o lugar com o maior número de negros fora da África. Por outro lado, tem essa sociedade que foi construída toda na ideia da inferiorização do outro, e esse outro era o negro."
No Rio de Janeiro também existem celebrações à Iemanjá, mas elas acontecem no réveillon. Até pouco tempo atrás, a festa em Copacabana ocorria em clima de tolerância religiosa. Desde a chegada à prefeitura de Marcelo Crivella, bispo da Igreja Universal do Reino de Deus, há dois anos, a cultura afro-brasileira vem sofrendo restrições, relata Fátima Damas, presidente da Congregação Espírita Umbandista do Brasil.
"Ele cortou não só a verba para as festas da umbanda e do candomblé, cortou também as verbas de vários eventos tradicionais no Rio de Janeiro, até do Carnaval", afirma. Agora, o Brasil tem em Jair Messias Bolsonaro um presidente que descreve a sociedade como judaico-cristã. "A gente sente amargura e angústia, nos sentimos discriminados."
Damas teme a crescente influência dos evangélicos, que, como eleitores, ajudaram Bolsonaro a chegar ao poder. Ela fundou a Comissão de Combate à Intolerância Religiosa depois que traficantes evangélicos expulsaram adeptos de umbanda e candomblé da Favela do Dendê.
"Esses problemas continuam disseminados em todo o país", afirma o babalaô Ivanir dos Santos, espécie de sacerdote do candomblé. Isso ocorre especialmente por causa do trabalho dos evangélicos nas penitenciárias. "Para mostrar bom comportamento, os presos se convertem. E quando saem e voltam para o tráfico de drogas, expulsam o candomblé e umbanda das comunidades. Não há nenhuma ação do Estado para coibir isso", diz.
Em 2011, a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República registrou 15 casos de intolerância religiosa em todo o país. Em 2016, foram 759 casos. Cultos afro-brasileiros, como candomblé e umbanda, são os mais atingidos, mas também há vítimas entre evangélicos e praticantes da religião neopagã wicca, associada ao culto às bruxas. Santos está no momento atualizando as estatísticas. "Mas há problemas na coleta de dados, pois nem todos são registrados pelas autoridades."
A intolerância também é disseminada nas mídias sociais. "A intolerância virou um comportamento social espalhado pela internet, mas também no relacionamento com o vizinho e com a família", diz Santos. E muitas vezes essa intolerância parte das igrejas evangélicas.
"Essas igrejas estão nas áreas pobres, onde o Estado não está presente, onde essa população não tem seus direitos respeitados. Lá, essas igrejas são a única assistência. Aí você acaba manipulando a carência das pessoas, e eles acabam incorporando o discurso do pastor, que demoniza a própria cultura", completa.
Os jovens se orientam, além disso, cada vez mais por exemplos da mídia, segundo o músico Silvan Galvão, do Pará. "O convívio que eles têm é com o pai, o avô e o vizinho, que não prosperaram. Mas a turma toda que eles veem na televisão ou nas suas redes sociais está mostrando prosperidade", afirma. A promessa principal das igrejas pentecostais é ser abençoado por Deus com a prosperidade.
No final, os jovens acabam se afastando cada vez mais da própria cultura, segundo Galvão. Ele mesmo é descendente de africanos e indígenas. "Eles esquecem a própria cultura, herança e ancestralidade."
Isso também pode ser observado nos quilombos, localidades fundadas por escravos fugidos. As tradições africanas em grande parte se perderam, sendo cada vez mais substituídas pelas igrejas evangélicas. "E o mais irônico é que são pastores negros da comunidade que assumem o papel de dizer o que é de Deus e o que é do diabo."
Mas também há sinais de esperança. Um tribunal condenou a rede de televisão Record há alguns dias a veicular quatro programas sobre cultos afro-brasileiros. Em 2004, a emissora várias vezes emitiu conteúdo ofensivo contra essas religiões, segundo o tribunal. A Record pertence a Edir Macedo, fundador da Igreja Universal e tio de Crivella.
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