República sem republicanos
7 de fevereiro de 2018Diferentemente do Carnaval, quando quem dá o tom são aristocratas como o Rei Momo e as rainhas das baterias das escolas de samba, nos tempos sem folia o Brasil é uma república.
A forma de governo criada pelos romanos deve garantir que os interesses da comunidade prevaleçam sobre os individuais. Concretamente, isso significa acabar com o nepotismo e elaborar processos políticos de decisão de forma transparente e respeitando o bem comum. Os romanos chamavam isso de Res Publica, ou "coisa pública" – ou, melhor ainda, "bem público".
Quando cheguei ao Brasil, há 20 anos, ficou claro rapidamente que, por aqui, o conceito de "coisa pública" é entendido de outra forma. Se alguma coisa é "pública", as pessoas podem fazer o que quiserem com ela. Locais públicos, como parques, ruas e praias, podem ser usados como cada um bem entende, sonorizados com música no último volume ou servir de lixão para os próprios detritos.
O mesmo vale para a política. Há semanas, o Ministério do Trabalho é o pomo da discórdia entre a Justiça e o PTB, presidido por Roberto Jefferson. Desde o início dos anos 1990, Jefferson sempre volta a se envolver em escândalos – o mais conhecido foi o mensalão, que ele denunciou e pelo qual foi condenado a uma pena de sete anos, perdoada em 2016 pelo STF. Até hoje, ele não chamou a atenção por virtudes republicanas.
Agora, Jefferson quer usar todo o seu poder – que, apesar de todas as suas faltas graves, ele manteve de forma espantosa – para impor a nomeação de sua filha Cristiane Brasil à posição de nova ministra do Trabalho.
Recentemente, um vídeo que a mostra numa lancha com homens seminus e uma gravação de 2014 em que ela supostamente coage servidores públicos a angariar votos para o cargo de deputada federal colocaram em dúvida o espírito republicano da parlamentar. Como é que figuras tão irrepublicanas podem exercer tanto poder numa república?
Geralmente, acredita-se que o presidente tem a obrigação de proteger a instituição república desse tipo de personagem. Mas, tanto no gabinete do Executivo quanto na base do governo no Congresso, é possível encontrar várias figuras a salvo da Justiça por causa do tal "foro privilegiado". Não seria de se esperar de republicanos que suspendam suas atividades até que as acusações de que são alvo sejam esclarecidas na Justiça?
O foro serve para proteger os representantes da República de um poder exercido de forma absolutista. Ou seja: quando a Justiça, o Executivo ou o Legislativo ultrapassam as suas respectivas competências. Mas, em vez de proteger a República, o foro é deturpado para se tornar a tábua de salvação de processos criminais. Não seria, então, tarefa do Supremo Tribunal Federal combater essa perversão do foro?
O princípio de que todos são iguais perante a lei se dissolve diante de tais privilégios. Enquanto 40% dos detentos nas prisões brasileiras esperam por seus processos, os poderosos e influentes escapam de suas perseguições e penas. Normalmente, privilégios não combinam com uma república. Quando são usados para desviar a lei, eles matam o espírito republicano.
Uma república precisa ser, sobretudo, uma comunidade solidária que garante a sobrevivência de todos. Como é possível, então, que recebedores de altíssimos salários, como juízes, ainda tenham direito, além da remuneração abundante, a um auxílio-moradia superior à receita de 90% da população brasileira?
Esse tipo de privilégio pode até ser legal, mas não dá para justificá-los diante da pobreza de grande parte do povo de uma república. Se o "Bolsa Família" é assistencialismo, o que são, então, os auxílios-moradia para esses magistrados?
No Carnaval, pelo menos, as coisas são claramente organizadas. Todos sabem que quem manda é o Rei Momo e que tudo e todos são subordinados a ele. O problema começa quando, na Quarta-Feira de Cinzas, ele devolve as chaves da cidade.
Thomas Milz saiu da casa de seus pais protestantes há quase 20 anos e se mudou para o país mais católico do mundo. Tem mestrado em Ciências Políticas e História da América Latina e, há 15 anos, trabalha como jornalista e fotógrafo para veículos como o Bayerischer Rundfunk, a agência de notícias KNA e o jornal Neue Zürcher Zeitung. É pai de uma menina nascida em 2012 em Salvador. Depois de uma década em São Paulo, mora no Rio de Janeiro há quatro anos.
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