No dia 19 de novembro de 1993, um grupo formado por 12 homens e mulheres negros foi almoçar no Hotel Maksoud Plaza, que tinha um dos restaurantes 5 estrelas mais caros de São Paulo. Pratos caros e sofisticados foram pedidos, gerando um gasto de 700,00 dólares – um valor significativamente alto para a época.
Na hora que a conta chegou, os 12 foram enfáticos em dizer que o restaurante deveria debitar o valor na dívida histórica que o país tinha com a população negra. Não haveria pagamento algum.
Os seguranças chegaram rapidamente e sem negociação possível, a polícia militar foi chamada. Como a violência já havia sido ensaiada, o grupo sabiamente criou um cordão humano para sair do restaurante, e depois se dispersaram pela Avenida Paulista, que ficava próxima ao hotel. A estratégia evitou que eles fossem presos.
Esses 12 homens e mulheres eram militantes do Movimento Negro e naquele dia 19 de novembro eles anunciavam o Movimento Pelas Reparações dos Afrodescendentes. Não pagar a conta de um dos restaurantes mais caros de São Paulo foi uma estratégia com duas intenções muito evidentes: reforçar como o racismo funcionava no Brasil e chamar a atenção da imprensa e da opinião pública para a demanda que eles defendiam.
A palavra de ordem era "Reparações, já!". E embora eu tivesse pouco mais de 10 anos na época, lembro com nitidez a tensão e euforia que pairou sob esse dia da "pendura negra" porque um dos 12 militantes que estiveram no Maksoud Plaza era meu pai.
É preciso dizer que o mesmo Maksoud Plaza já havia tomado um belo "calote" em 1981, quando alunos da Faculdade de Direito da USP, realizaram o seu "tradicional" pendura para comemorar o dia 11 de agosto. A conta foi maior, mas o uso da violência e das forças de repressão menor. Afinal, sabemos bem qual a cor da imensa maioria dos estudantes de direito da USP na década de 1980 –quadro que mudou pouco desde então.
Pedido de desculpas simbólico
A ideia desses 12 militantes era fazer uso dessa "tradição" circunscrita quase que exclusivamente aos brancos ricos da cidade, e por isso mesmo tolerada, com uma grande diferença: enegrecendo-a. Eles escolheram a dedo a data que antecede o 20 de novembro – quando se rememora a morte de Zumbi dos Palmares, e hoje se celebra o Dia da Consciência Negra – para mostrar que o Brasil tinha uma dívida histórica com a população negra e que essa dívida tinha um valor estratosférico: 700 dólares não dariam nem para o começo.
O que eles defendiam ali era a urgência e o dever da criação de políticas de reparação simbólica e material para toda a população negra do país, não só pelos mais de 300 anos de escravidão, mas pela marginalização e exclusão social, política e econômica experimentada em toda a República brasileira. Uma reparação que passava, inclusive, pela ideia de indenização financeira.
Hoje, 30 anos depois, em 18 de novembro, o Banco do Brasil, o primeiro banco a ser criado no país, pediu desculpas ao povo negro brasileiro. O motivo – aqui já tratado – foi um inquérito aberto pelo Ministério Público a partir de pesquisa feitas por historiadores e historiadoras brasileiros (grupo no qual me incluo) que demonstram que a segunda criação do Banco do Brasil, em 1853, teve como base o capital proveniente do tráfico ilegal de africanos escravizados. Na verdade, boa parte das fortunas brasileiras construídas na segunda metade do século 19 – muitas vinculadas à produção e exportação de café – foram feitas a partir da compra, venda e escravização ilegal de africanos, segundo as leis que vigoravam no Brasil desde 1831. Ou seja, o Banco do Brasil está longe de ser a única instituição brasileira a se desculpar, a pensar e a efetivar políticas de reparação.
Sem dúvidas que o pedido de desculpas do Banco do Brasil é simbólico. E não me parece casual o fato deste pedido ter acontecido justamente quando uma mulher negra é, pela primeira vez na história, a presidente da instituição. Mas as simbologias são pontos de partida fundamentais para a criação de políticas de reparação. É preciso reconhecer a ordenação racista para poder transformá-la.
Lutas dando frutos
Nesse novembro negro, pudemos observar como as lutas dos movimentos negros do país seguem colhendo frutos para todo o Brasil. Como pontuado, a própria ideia de reparação foi pautada pelo movimento negro, assim como a lei 10.639 que completa 20 anos em 2023, a criação de um ministério específico para promover a Igualdade Racial do Brasil, a implementação das cotas raciais nas universidades – que foi mantida e ampliada para a população quilombola.
Há também os frutos mais miúdos, da vida corrida, das famílias e comunidades negras que se organizam para sobreviver e tentar reinventar um mundo que segue dizendo onde e como essas pessoas devem ser e estar.
E nesse mesmo novembro negro, foram divulgados novos dados sobre a segurança pública, que também compõe um retrato contundente da força estrutural do racismo. A mesma juventude negra, que poderia e deveria estar nas universidades, está sendo sistematicamente encarcerada ou morta, muitas vezes em decorrência de ações de órgãos de repressão do Estado. São esses mesmos jovens negros que são obrigados a abandonar as escolas para trabalhar e ajudar em casa. O feminicídio mata mais mulheres negras... Desde os tempos da escravidão, as violências física, moral, sexual, simbólica e psicológica organizam a gramática que narra as vidas negras.
Como bem disse Millôr Fernandes: o Brasil tem um enorme passado pela frente.
Por isso, assim como foi clamado há 30 anos: Reparações, já!
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Mestre e doutora em História Social pela USP, Ynaê Lopes dos Santos é professora de História das Américas na UFF. É autora dos livros Além da Senzala. Arranjos Escravos de Moradia no Rio de Janeiro (Hucitec 2010), História da África e do Brasil Afrodescendente (Pallas, 2017), Juliano Moreira: médico negro na fundação da psiquiatria do Brasil (EDUFF, 2020) e Racismo brasileiro: Uma história da formação do país (Todavia, 2022), e também responsável pelo perfil do Instagram @nossos_passos_vem_de_longe.
O texto reflete a opinião da autora, não necessariamente a da DW.