Rio tenta levar língua alemã a suas escolas
17 de maio de 2018Enquanto caminha pelos corredores do Ciep Darcy Ribeiro, em Campo Grande, Zona Oeste do Rio, o professor Josué Santos é parado diversas vezes. "Guten Morgen, Herr Lehrer!”, dizem crianças de sorriso aberto. Nem todos são seus alunos, mas fazem questão de cumprimentá-lo em alemão, idioma que aprendem desde fevereiro deste ano.
A escola que leva o nome do idealizador dos Centros Integrados de Educação Pública (Cieps) é uma das três escolhidas na rede municipal do Rio para oferecer ensino bilíngue português-alemão. O objetivo é que sejam dez até 2020. No município, 25 unidades oferecem esse tipo de formação, tendo 12 o inglês como segunda língua, nove, o espanhol, e uma, francês – também inserido neste ano.
Na escolha pela inclusão da língua alemã, pesou a trajetória pessoal do secretário municipal de Educação, César Benjamin. "Filosofia, música e ciência são três áreas da cultura humana que compõem minha vida desde a adolescência. Não dá para falar de qualquer uma delas sem passar pela Alemanha. Por enxergar nessa língua tamanho potencial cultural, decidi incorporá-la”, conta.
Ao aderir à iniciativa, as escolas se comprometem a oferecer o ensino da segunda língua com carga de cinco horas semanais e criar um ambiente de aproximação com a cultura dos países onde o idioma é nativo. A ideia é que, no longo prazo, todas as aulas sejam ministradas 60% em português, 40% em um segundo idioma.
No ano passado, a Secretaria Municipal de Educação (SME) fez um levantamento para saber quais diretores tinham interesse em receber a língua alemã em suas escolas. Alecsandro Amorim, à frente da escola em Campo Grande, viu no convite uma oportunidade de revelar novas possibilidades a crianças de baixa renda familiar.
"Quando um cidadão tem contato com uma língua estrangeira, além de se redefinir subjetivamente, pode, a partir do contato com essa cultura, redefinir o contexto onde está inserido, o entorno dele”, comenta.
Amorim ocupa o cargo de direção na escola há 11 anos. Nesse período, promoveu um salto qualitativo na unidade. Com o auxílio de programas do governo federal como o PDE Escola e o Mais Educação, a nota da escola Darcy Ribeiro no Ideb (Índice de Desempenho da Educação Básica) saltou de 3,9 para 6,6, e a unidade se tornou uma das 50 mais bem colocadas na rede municipal.
O resultado chama atenção, sobretudo, pelo contexto em que a escola está inserida. A maioria dos estudantes vive em casas de estrutura precária, às margens de um rio que cruza o bairro e deságua na Baía de Sepetiba.
Até o ano passado, havia um acerto entre a direção e os responsáveis para que os alunos não fossem às aulas em dias de chuva intensa. A região é habitat natural de jacarés que subiam junto com a água do rio e passavam a representar perigo às crianças. Desde a construção de um condomínio no entorno, os animais não foram mais vistos.
Os bons resultados obtidos pela escola a credenciaram a receber o projeto. Lá, são atendidos alunos do 1º ao 6º ano do Ensino Fundamental. Nessa fase inicial, contudo, só os alunos do primeiro ao quarto têm aulas de alemão.
Por toda a escola, as paredes e murais exibem placas e mensagens em alemão. "Leseraum” indica a sala de leitura, e "Sekretariat”, a secretaria. Em um mural, a importância dos livros é lembrada: "Lesen heißt Entwicklung” (ler significa desenvolvimento).
Quando o professor Josué entra na sala do terceiro ano, há três alunos virados de costas para o quadro, como que de castigo. A professora da turma se aproxima e explica que são crianças ainda em alfabetização.
"Fazemos um trabalho especial com elas para que consigam chegar ao estágio dos colegas e tentamos observar se há algum distúrbio de aprendizado”, diz.
Na aula de alemão, todavia, elas ficam ordenadas como os colegas. A aula começa com um exercício de levantar e sentar da cadeira, para assimilação de verbos de comando. Após identificarem cores de cartazes exibidos por Josué, as crianças disputam para entregar primeiro ao professor objetos pessoais cujas tonalidades deverão ser identificadas pelas outras.
Quando um dos alunos o chama de "tio”, como se referem aos outros professores, ele os lembra: "Ich bin kein tio!” (não sou tio!). Após segundos de silêncio, uma colega ajuda o menino: "é Herr Lehrer!” (senhor professor).
A turma cai na gargalhada quando Josué explica a um deles que a letra "Q” é pronunciada como "cu” em alemão. Após um exercício de identificação dos lados de partes do corpo (braço esquerdo; perna direita), chega o momento de cantar uma música que vai ajudar na memorização dos pronomes pessoais.
Para que a inclusão da língua alemã na rede municipal não dependesse da abertura de concurso para a contratação de professores, a SME mapeou quais profissionais da rede tinham formação para dar aulas do idioma. Havia cinco, que davam aulas de português ou outra língua estrangeira até então. Eles foram remanejados e distribuídos nas três unidades.
Por ter sido alocado em uma escola muito distante de sua casa, Josué gasta de 500 a 600 reais mensais do próprio salário para ir e voltar. O benefício de transporte pago pela SME cobre os deslocamentos de ida e volta, mas não dos três ônibus que ele precisa pegar, em um trajeto de quase três horas.
"Quem é professor de língua estrangeira sabe que, às vezes, o aluno demora muito a querer falar, e essas crianças querem. Isso me surpreende. Eu não diria que eles compraram a ideia, mas que se apropriaram dela, tomaram para si”, conta Josué.
Dificuldades iniciais
A iniciativa enfrenta, também, barreiras materiais. Os livros didáticos precisam vir da Alemanha, e a compra pela Prefeitura envolve processos burocráticos. Enquanto isso, são utilizados exemplares emprestados pelo Instituto Goethe do Rio, principal parceiro do projeto.
O encarregado de acompanhar o desenvolvimento dos trabalhos in loco é Fernando Gil, responsável pelo Departamento de Cooperação Pedagógica do instituto. Ele não atribui às limitações materiais os principais obstáculos do projeto.
"O modelo didático utilizado no Brasil, com as tradicionais aulas frontais e carteiras pregadas no chão, remete ao século 19, praticamente. Para ensinar o alemão, utilizamos princípios que pregam a autonomia do aluno e o contato manual com as atividades, por meio do toque. É um projeto pedagógico novo aqui”, explica.
Outra questão que se coloca, levando em consideração a realidade do ensino público brasileiro, é a capacidade de alunos com limitações na alfabetização e aprendizado da língua portuguesa aprenderem alemão. Os agentes envolvidos no projeto garantem ser possível.
Susan Zerwinsky, vice-diretora do Instituto Goethe no Rio, teve experiências com o ensino de alemão em situações de conflitos e pobreza, como no Iêmen, Afeganistão e países africanos.
"Nessa idade, as crianças estão abertas a tudo, especialmente ao novo. De fato, podem faltar coisas importantes em casa, como a estante de livros ou o apoio familiar. Com os bons métodos, os professores podem dar aulas incríveis mesmo fora das condições ideais”, assegura.
De acordo com Zerwinsky, há interesse em ampliar o apoio material às escolas. Para isso, entretanto, o poder público precisa dar mostras de estabilidade do projeto. A abertura de concurso para a contratação de professores de alemão seria um primeiro passo.
O secretário César Benjamin garante que um projeto de lei será enviado à Câmara dos Vereadores do Rio ao longo deste ano, para criar a carreira de professor de alemão, de modo a realizar o concurso em 2019. "Eu diria que ainda estamos na fase heroica do projeto. A partir do ano que vem, precisamos consolidá-lo de maneira institucional”, diz.
Benjamin afirma não ter tomado conhecimento do gasto pessoal de Josué com os deslocamentos para o trabalho até ser procurado pela reportagem, mas diz que não veria problema em fazer uma complementação do valor pago por ele.
Nos corredores da escola, a coordenadora pedagógica, Arilza Machado, recebia abraços de crianças ávidas por contar o que fizeram no fim de semana. Havia relatos deslumbrados de passeios ao centro do bairro. "Imagina que, agora, elas falam em ir para a Alemanha”, comenta.
"Às vezes, perguntam para mim por que eu escolhi estudar alemão e não ‘africano', se sou negro. Eu digo para a pessoa: quer dizer que a galinha só pode comer milho? Se você jogar laranja, ela vai comer laranja. E eu não sou nem galinha! Sou um brasileiro cidadão do mundo e tenho possibilidade disso”, fala o professor Josué Santos.
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