"Russos fogem porque não querem sujar as mãos de sangue"
7 de outubro de 2022Desde que o presidente da Rússia, Vladimir Putin, anunciou uma mobilização parcial das tropas para a guerra na Ucrânia, centenas de milhares de russos fugiram para países vizinhos, como Geórgia, Cazaquistão e Belarus. Muitos partiram mesmo antes de serem convocados.
Entre os que ficaram, vários protestaram. O país inteiro foi alvo de manifestações de massa contra o recrutamento militar, que acabaram sendo fortemente reprimidas pela polícia.
Irina Ivanova (nome fictício por questões de segurança) diz que, apesar da situação desesperadora, sua prioridade é ao menos salvar a si mesma e parte de sua família. Seu filho foi um dos que deixaram o país para evitar a convocação.
"Os homens estão fugindo porque não querem sujar as mãos de sangue. As mulheres, como eu, ficaram. O que podemos fazer? Talvez vamos ser forçadas a nos revoltar e haja um levante de mulheres", diz a russa em entrevista à DW.
DW: A senhora pode nos dizer onde está seu filho?
Irina Ivanova: Meu filho está no Cazaquistão e atualmente organizando a vida dele para um futuro próximo. Talvez ele vá a consulados de outros países para solicitar vistos.
Ele deixou a Rússia por causa da mobilização?
Não, antecipamos os eventos porque ele poderia ser um dos primeiros a ser recrutado. Ele tem cerca de 30 anos, está estudando e já serviu no Exército. Inicialmente, eles disseram que os estudantes não seriam convocados, mas representantes de comitês militares e da polícia continuaram aparecendo na universidade. Então decidimos, de um dia para o outro, que ele deveria partir. Meu filho comprou a passagem e viajou para uma cidade na fronteira com o Cazaquistão. Sabíamos que não seria possível cruzar a fronteira legalmente. Um amigo meu o ajudou e esperou até que ele passasse por todos os controles e entrasse num carro do outro lado.
Centenas de milhares de russos buscaram refúgio em países vizinhos. Por que a mobilização foi tão chocante? Os russos viveram sete meses como se não houvesse guerra na Ucrânia.
Isso não é verdade. Todo mundo sabe que há uma guerra na Ucrânia. Mas cada um tem o seu dia a dia. Quem foi para a guerra tinha diferentes motivos: ideológicos, financeiros ou algum tipo de convicção interna. Mas agora as autoridades tomaram decisões por cima da cabeça dos cidadãos, e muitos não concordam. Eles estão fugindo para não ter que ser parte disso tudo.
Qual é sua opinião sobre alguns países estarem fechando as fronteiras para cidadãos russos?
Por um lado, a preocupação deles é compreensível. Por outro, estou decepcionada que todos os russos estejam sendo impedidos de entrar, e não apenas os culpados por isso tudo. Os russos estão sendo rejeitados mais por medo e por boicote político: a Rússia é o agressor e, portanto, todos os russos são agressores. Mas as pessoas devem ser vistas individualmente: eu, meu filho, meus amigos, os filhos dos meus amigos. Eles não são agressores e invasores. Eles estão protestando de todas as formas possíveis. Essa é a fatalidade de todos que discordam da política russa.
Muitos no exterior pensam que os russos não deveriam fugir do problema, mas lutar contra ele.
Não vejo uma maneira de os próprios cidadãos acabarem com o que está acontecendo aqui. Como vamos fazer isso? Os homens estão fugindo porque não querem sujar suas mãos de sangue. As mulheres, como eu, ficaram. O que podemos fazer? Talvez vamos ser forçadas a nos revoltar e haja um levante de mulheres. Houve muitos exemplos no passado.
Houve grandes protestos de mulheres no Daguestão e em Sakha. Por que não em grandes cidades como Moscou?
Falo disso o tempo todo com amigos e colegas. Embora tenhamos opiniões diferentes, concordamos em uma coisa: somos responsáveis por nossos filhos. Fui a todos os protestos, vigílias e manifestações. Mas sempre cuidei de não ser vítima dos cassetetes da polícia, porque tenho outros dois filhos que ainda são menores de idade. Existem milhões como eu. Se por algum motivo não estivermos mais aqui, as vidas das nossas famílias e dos nossos filhos também vão ser destruídas.
Em pequenas repúblicas, como Daguestão ou Sakha, há um forte senso de solidariedade familiar e de clã. Nós, moscovitas, não temos ninguém para nos apoiar. Não queremos viver como estamos tendo que viver hoje, mas não podemos fazer nada a respeito. Essa é a nossa maior tragédia e nossa maior desgraça.
Que reações à mobilização parcial das tropas a senhora observou entre amigos e em geral no país?
Todos no meu círculo de amigos estão horrorizados e rejeitam esta guerra. Eu odeio o Estado que usurpou minha pátria. Já venho repetindo essa frase há provavelmente 20 anos. Mas também sei que nas regiões, nas cidades pobres, nas vilas, onde a informação chega de forma distorcida e apenas pela televisão e rádio estatais, há visões muito diferentes. É um território enorme, e os cidadãos foram preparados para apoiar tudo isso. Aqui, sentimos que somos a minoria.
Que futuro vê para o seu país? E para si mesma?
Não vejo futuro na Rússia de hoje. Não temos um líder que possamos seguir, todos foram eliminados. Ninguém mais está tentando se tornar líder. Não temos mais qualquer meio de influência. Só temos a nossa rejeição e a nossa resistência contra tudo. Podemos pelo menos tentar salvar parte da nossa família e a nós mesmos.