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Sexagenário Handke resgata imagens dos anos 60

Simone de Mello5 de dezembro de 2002

O austríaco Peter Handke, que completa 60 anos nesta sexta-feira (6), lança nova coletânea de textos sobre cinema, literatura e artes plásticas e invoca o poder das imagens.

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Peter HandkeFoto: AP

"Jamais uma noite me pareceu tão real, tão elementar [...]. Quando vi La Notte, tive pela primeira vez uma espécie de sentimento do mundo, para lá de todos os sentimentos individuais. [...] É como se, como mero espectador, eu tivesse merecido o mundo (algo que eu só tinha conseguido sentir até então com um certo trabalho). E o mundo, sem qualquer imprevisto noturno, estava lá, como um evento; a 'grande amplidão do mundo', de acordo com o diagnóstico do Sr. Goethe, um viajante em seu próprio quarto, observando os quadros." Assim descreve Handke a primeira vez em que assistiu – em 1962 – A Noite, de Antonioni, filme protagonizado por Jeanne Moreau, com quem o jovem escritor austríaco recém-estabelecido em Paris viria a ter um caso, na década de 70.

"Uma coisa chamada cinema"

No texto "Apetite de Mundo: discurso de um espectador sobre uma coisa chamada cinema" (1992), republicado na recente coletânea Mündliches und Schriftliches (Orais e Escritos - Sobre livros, imagens e filmes – 1992-2002. Frankfurt a.M., Suhrkamp, 2002), Handke mostra que sua obstinada busca de um acesso não intermediado ao "mundo" não representa uma tentativa de neutralizar a(s) mídia(s). Para o roteirista de Asas do Desejo, de Wim Wenders, e cineasta esporádico (Die linkshändige Frau / A Mulher Canhota, 1977; L'absence / A Ausência, 1992), o cinema se revelou – através da Nouvelle Vague – "como uma coisa da realidade, da mais ampla das realidades, e como a única coisa do gênero, naquela época, nos anos 60 do século 20".

Por mais que esta reminiscência dos sixties – década da sua estréia literária, com o romance Die Hornissen (Os Marimbondos, 1966) – deixe transparecer uma certa nostalgia, o cinéfilo Handke não se deixa abater pelas decepções com a produção contemporânea, que constantemente o fazem abandonar o cinema no meio da sessão. "Este não é o fim das imagens", intitula Handke um outro texto da coletânea, em que defende o cinema contemporâneo das acusações de decadência, elogiando – por exemplo – Pulp Fiction, de Tarantino.

O romancista e suas marginálias

Na nova antologia de discursos e artigos circunstanciais proferidos e publicados nos últimos dez anos (continuação da última coletânea do gênero, Langsam im Schatten / Devagar na Sombra, que reúne textos de 1980 a 1992), Handke faz jus a sua predileção pelo marginal, enfocando – com exceção de alguns nomes consagrados, como Marguerite Duras, na literatura, Anselm Kiefer, na pintura, e Abbas Kiarostami, no cinema – artistas à margem dos meios de comunicação de massa, como o escritor Hermann Lenz, os cineastas Jean Marie Straub e Danièle Huillet e o pintor Zoran Music.

De todos os artistas retratados por Handke na recente coletânea, o crítico e historiador da arte Helmut Färber, que costumava escrever singulares críticas de cinema no diário Süddeutsche Zeitung, na década de 60, é o que melhor catalisa os interesses estéticos de Handke. O próprio escritor admite que um de seus primeiros romances, Der kurze Brief zum langen Abschied (Breve carta sobre a longa despedida, 1972) jamais teria sido escrito, se ele não tivesse lido as críticas de Helmut Färber. "Seus textos consistiam [...] praticamente apenas em digressões", comenta Handke, como se estivesse descrevendo o movimento de sua própria escrita. Aliás, o protagonista deste romance é o que melhor define esta tendência handkiana: "Ocorreu-me que durante muito tempo eu também tinha uma percepção bizarra do mundo a minha volta. Quando tinha que descrever alguma coisa, eu nunca sabia direito sua aparência, lembrando-me apenas das singularidades; e, quando não havia nenhuma, eu inventava".

A predileção pelo periférico, que acaba por diluir o "enredo" dos romances de Handke num fluxo de percepções pontuais e contingentes, pode ser resumida com as seguintes palavras do protagonista de Breve Carta sobre a Longa Despedida: "Eu me sentia como antes, quando – ao descrever o que alguém tinha feito – não conseguia omitir nenhum detalhe de suas ações. Se eu entrava numa casa, ao invés de dizer ‘Entrei na casa’, dizia: ‘Limpei o sapato, virei o trinco, fechando a porta atrás de mim’. Quando mandava uma carta para alguém, em vez de ‘mandar a carta’, sempre ‘pegava uma folha em branco, tirava a tampa da caneta, escrevia, dobrava a folha, colocava-a no envelope, anotava o endereço, colava um selo e jogava a carta na caixa de correio’."

Em busca das imagens perdidas

É esta fascinação pelo contingente e pela temporalidade da percepção que transforma os romances de Handke numa enciclopédia de gestos e de imagens, geralmente colhidas por personagens em viagem, seja na fronteira da Áustria, em plena fuga (O Medo do Goleiro Diante do Pênalti, 1970), ou atravessando os Estados Unidos numa "sentimental journey" (Breve Carta sobre a Longa Despedida, 1972), seja em "viagem à roda do quarto", num subúrbio parisiense (Mein Jahr in der Niemandsbucht / Meu ano na Enseada de Ninguém, 1994), buscando cogumelos na floresta (In einer dunklen Nacht ging ich aus meinem stillen Haus / Numa noite escura, saí da minha tranqüila casa, 1997), ou atravessando a paisagem árida de um planeta em guerra, projetado numa Espanha pós-utópica (Der Bilderverlust / A Perda das Imagens, 2002).

Buchcover: Handke - Bildverlust
Handke resgata Cervantes em seu último romance, "Perda das Imagens"

Assim como a famosa cena de Jules e Jim (F. Truffaut, 1961), em que (mais uma vez) Jeanne Moreau e os dois outros "jotas" do triângulo amoroso saem pelo bosque em busca de vestígios humanos, o resgate de imagens na paisagem sempre é a principal ocupação dos narradores (e personagens) handkianos. Suas imagens querem se passar por achados, objets trouvés, como se sempre tivessem estado lá, esperando apenas ser redescobertas pelo observador (e leitor).

No ensaio "Anselm Kiefer ou a outra caverna de Platão", republicado na recente coletânea, Handke diz ter a impressão de que as pinturas do artista alemão já existiam antes do observador, antes mesmo do artista e sua época, remetendo a uma pintura pré-histórica, "não à pintura das cavernas, mas sim a imagens [...] que surgiram da terra, do solo, do caminho, do dique, emergindo agora na vertical e monumentalmente".

Analogamente, uma observação de Helmut Färber, citada por Handke, poderia ser perfeitamente aplicada a qualquer um de seus romances: "Em Griffith, a narrativa surge de cada um dos quadros. [...] A narrativa deve surgir como se existisse por si própria. A ilusão a ser criada não é a de que realidade foi produzida pelo filme, mas sim a de que a realidade já existia e foi meramente filmada".

Contra a "impotência descritiva"

Ao invocar constantemente a avidez por um acesso imediato à realidade, anterior ao filtro da(s) mídia(s), Handke já levantou entre os críticos a suspeita de ser um "místico das coisas". No entanto, a ilusão do extremo real na prosa de Handke, deste "sentimento do mundo" surge de uma complexa inter-relação entre palavra e imagem. Foi do nouveau roman – em especial de Allain Robbe-Grillet – que Handke herdou sua minuciosa dicção descritiva, aguçando-a no entanto com uma ótica radicalmente subjetiva. Com esta opção estética, Handke se voltou – em meados da década de 60 – contra o "Novo Realismo" alemão, acusando seus representantes – num legendário encontro do Grupo 47 em Princeton, em 1966 – de "impotência descritiva".

Numa retratação posterior, pouco depois do evento, Handke tentou desfazer os equívocos gerados por sua intervenção em Princeton, que contribuiu para a dissolução do Grupo 47: "Sou a favor da descrição, mas não da descrição proclamada hoje na Alemanha como 'Novo Realismo'. O que se costuma ignorar é que a literatura é feita com linguagem e não com coisas descritas pela linguagem. Nesta nova corrente literária, as coisas são descritas sem qualquer reflexão sobre a linguagem".

No caso de Handke, esta reflexão passa necessariamente pela imagem, pelo potencial de a escrita conduzir o olhar e estender no tempo (como narrativa) a percepção visual. Em Orais e Escritos, Handke lê as imagens de pintores, cineastas e escritores, ficcionalizando-as no contexto em que ele – observador – as viu: o ateliê subterrâneo de Anselm Kiefer, que o remeteu às cavernas da Caríntia, onde fazia excursões escolares na infância; o cenário de Cambridge, onde visitou diversas vezes seu tradutor inglês Ralph Manheim; ou o ambiente das matinês nas salas de cinema parisienses.

Ou, à margem dos eventos, no caminho de volta para casa, depois de uma sessão de cinema: "Que grandiosos os caminhos de volta depois deste ou daquele filme, que caminhos maravilhosos. Não há nada neste mundo comparável a estes trajetos depois do cinema, depois da Viagem a Tóquio, de Ozu, de Andrei Rubliov, de Tarkovski, de Mouchette (A Virgem Possuída), de Bresson ou de Nazarin, de Buñuel. Caminhos de casa onde estar em casa era justamente caminhar, longe e mais longe. Portanto, um salmo do espectador aos deuses do cinema: mais filmes para mais caminhos de casa".